quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Cidades.

Apresento-lhe minha plantação de prédios
Onde cultivo pessoas pra não morrer de tédio
Vez ou outra me lembro de pôr água e alimento
De resto, observo eles presos em engarrafamentos.

Chega a ser poética ver a dedicação de cada um
Indo de um lado ao outro, chegando em lugar nenhum

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Cefaleia.

Meu corpo dói como se faltassem forças para o próximo passo. A lua, do alto, sorri como se quem pede desculpas, sem graça por não poder fazer nada. É como se o ar ficasse mais denso de repente e você precisasse do dobro de esforço para se movimentar. Os relaxantes musculares que engulo em copos cheios de água suja pouco fazem efeito no meu sangue acostumado. Sangue esse que falta nas pernas e na cabeça para pensar direito ou mudar de lugar. Sinto como a pancada do mindinho em um móvel qualquer da sala, sendo o mindinho minha cabeça e o móvel o que a vida trouxe. Esqueço como se respira e como se age em público e evito sair de casa para não me expôr ainda mais aos males que essa sociedade nos traz. Quando o telefone toca, me escondo feito um cão assustado e outro dia até imaginei que alguém batia na porta por três horas sem parar. Talvez uma voz familiar chamava meu nome em prantos, mas logo balancei a cabeça e lembrei que aquela voz não poderia estar ali. O maior desafio é compreender o que é real. Por não confiar mais nos meus olhos, tapei as janelas e desliguei as luzes. Tudo é uma sombra da sombra da sombra de algo real, como minha imagem no espelho. É como me vejo. Meus travesseiros mofados de lágrimas e saliva hoje servem para abafar os gritos de quando a dor volta. E ela insiste em voltar pra minha cabeça, sem ser convidada, sem ser querida. A perna falha mais uma vez, alcanço o copo. Esbarro sem querer e derrubo pela janela. A Lua ri mais uma vez.

Bastilha.

Lutamos a batalha dos pobres de paz e opotunidades
Pois até cair o último dos nobres e recuperarmos nossa liberdade
Vamos derrarmar o sangue sagrado sobre a grama que pisamos os pés
E tudo vai terminar quando os reis se curvarem a nós.

Ria enquanto pode, que a felicidade é ilusão para poucos
Que quando a bomba explode, não sobre paz nesse mundo louco.

Eclipse.

Olhei pra cima e esconderam a Lua
Quem agora me trará notícias suas?
Quem vai sorrir quando tudo tiver errado?
E me ajudar quando doer demais o passado.

Faça-me o favor de não se repetir:
É chato falar que preciso de você aqui.
A noite já é difícil demais por si.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Infância.

A saudade às vezes bate forte
Das ruas que cresci
Dos tombos que levei
E dos amigos que perdi

Sentado sobre o muro do vizinho
Eu ria com ingenuidade
Torcendo pra que tudo aquilo
Não fosse embora com a idade

Hoje, mil quilômetros depois
Tantos traumas, tantos medos
Tantos sonhos que abandonei
Que não cabe nos dedos

Meu dia era bem menos complicado
Hoje só sobra stress e nostalgia

Entre mais um café e um trem lotado

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Filhos do Césio - Prólogo

Bartolomeu se arrependia várias vezes por dia de ter trago seu filho pra mais essa expedição. O molecote mal tinha completado 12 anos e não conseguia se concentrar na viagem, como era típico da idade. Eles andavam há dois meses, saindo de São Paulo e rumo ao Rio Vermelho, mas parece que não chegavam muito. A comida começava a rarear e o menino começava a sentir o peso de ter acompanhado o pai.
Bartolomeu já perdia a conta de quantas expedições participou, mas tinha rodado por toda a terra nova e pisado em cada capitania. Ficara sabendo que mais pro interior havia índios com ouro em abundância e que desconheciam o valor do metal. Naquela época era o que importava. Quando seu avô chegou de Portugal na terra nova, os índios aceitavam qualquer coisa em troca de seus bens, hoje a única coisa que seu grupo oferecia era matá-los com maior agilidade para que não sofressem muito. Sua expedição já era famosa em Lisboa.
Porém, a sorte não parecia estar do lado deles justo na vez que seu filho resolveu os acompanhar. O mau humor da fome, a dificuldade de se localizar, tudo estava dando errado. Ele sonhava em ver seu filho rei daquelas terras, em um trono de ouro maciço rodeado de cortesãs e índias intocadas, para seu deleite.
Ele mesmo já tinha vivido o suficiente. O próprio filho era fruto de uma negrinha qualquer que encontrou por aí. Ele a usou uma vez, e quando voltou pra São Paulo encontrou ela com o moleque de lado. Era a cara do pai. Curioso, explorador, empolgado. Quando crescer vai ser um sucesso entre as mulheres e, se Deus abençoar suas andanças, vai ser o Rei daquelas terras.
Manuel Raposo comandava a expedição aquela hora, abria os caminhos e nos guiavam. Bartolomeu ficou pra trás para acompanhar o filho que andava cansado. O menino não tinha forças nem pra reclamar mais, mas Bartolomeu sabia que não podiam montar acampamento antes do anoitecer, onde os responsáveis pela guarda ficariam a espreita. Mas que seja, o menino precisa se acostumar com as viagens se ele quiser também ser um conquistador.
Às vezes, Bartolomeu pensava se seu filho compartilhava suas aspirações. Se ele na verdade não gostaria de ir estudar em Lisboa e se tornar artista, ou virar tabelião na cidade. O relacionamento dos dois sempre foi muito próximo, se ele quisesse algo que fosse diferente o garoto o falaria.
O garoto mal conseguia segurar os olhos abertos. Bartolomeu começou a ficar preocupado. Quando ele tropeçou e caiu, Bartolomeu soube que era hora de parar. "Raposo, descansarei com meu filho. Alcanço vocês antes do amanhecer ou partam sem mim". Manuel, que achara desde o início uma bobagem carregar o garoto na viagem, deu de ombros e mandou a comitiva seguir. Com algumas guarnições e um pouco de cachaça para aguentar o frio da noite, Bartolomeu e seu filho pararam sob uma árvore, onde Bartolomeu observou seu filho descansar.
Depois de um tempo e com o Sol bem mais baixo, Bartolomeu acordou seu filho, deu um pouco da água de seu cantil e foram seguindo a trilha deixada pelo seu grupo. Tentando manter o ritmo mais rápido, ele tentava animar seu filho para que não se perdessem para sempre do grupo. O garoto, ainda cansado, pouco respondia as tentativas de conversa de seu pai.
Frustrado com a pouca interação de seu filho, Bartolomeu resolveu conversar finalmente sobre o que ele queria da vida. Virou bruscamente já com raiva no olhar e se arrependendo novamente da decisão e... seu filho tinha sumido. O desespero tomou conta dele. Ele corria de volta na trilha, chorando de raiva como se botasse pra fora todas suas frustrações. Tentava não gritar, com medo de chamar atenção das tribos que poderiam morar na região.
Quanto mais ele corria, menos ele reconhecia o lugar onde estava. Agora gritava a plenos pulmões o nome de seu filho. Queria não ter levado o garoto nessa expedição, ele não estava pronto ainda. A dor era tão desesperadora que desejou não ter saido da casa de seu pai, ainda novo, para conhecer novas terras. Assim não teria conhecido a mãe de seu filho e o ato não seria consumado.
A noite caiu e com ela seu coração. Ajoelhado em prantos, com a floresta iluminada apenas pela lua, já tinha perdido as esperanças de encontrar seu filho e agora também sua comitiva. Faltava-lhe ar para chorar, faltava-lhe motivo para se mover. Até que bem distante: "PAI!".
Tirando força de sua fé e o amor pelo seu filho, Bartolomeu levantou e correu em direção ao grito. "PAI!", ele ouvira de novo, apressando mais ainda seu passo. Os galhos cortavam-lhe o rosto e os braços, mas seu desespero era maior. Seu filho estava bem e isso que importava. Correu por milhas até que enxergou ao longe a luz de uma fogueira. O chamado vinha de lá. Graças ao Senhor, seu filho encontrou um local seguro, ou quem sabe ainda encontrou uma comitiva!
Correndo desesperado, ele parou próximo a fogueira e não viu ninguém. Uma clareira gigantesca se abria em sua volta. Ocas de palha se erguiam majestosas em sua volta. Ele estava sozinho e em território inimigo.
Pouco a pouco, nativos saíram de suas casas, carregando lanças e zarabatanas que Bartolomeu conhecia de tantos outros encontros. Tentou falar em uma das línguas indígenas que aprendera nas viagens, o que só os tornou mais hostis. Cerca de 30 homens nus e pintados para a guerra o cercavam, como se os estivessem esperando. Os homens se agitavam e dançavam em volta de Bartolomeu, enquanto vozes de crianças e mulheres entoavam uma canção quase demoníaca.
O homem, desesperado, que perdera seu filho e sua comitiva no mesmo dia, aceitara sua morte iminente. Ajoelhado próximo a fogueira, e vendo seu cerco se fechar cada vez mais, deu um gole em sua cachaça para aliviar suas dores físicas e psicológicas e jogou um segundo gole para a fogueira, como última oferenda aos santos que tanto os acompanharam durante suas viagens.
Os índios, cada vez mais próximos, se assustaram com o fogo que subiu na combustão da cachaça e deram um passo pra trás. Bartolomeu, vendo sua oportunidade, começou a gritar loucamente, no pouco que sabia de uma das línguas nativas, enquanto jogava pequenas quantidades de sua cachaça da fogueira: "Isso mesmo! Sou o rei do fogo e da água! Sou o rei deste e do outro mundo! Essa terra é minha! Colocarei fogo em todo o Araguaia e Rio Vermelho caso vocês não me obedeçam! Meu poder é forte! O demônio me prometeu essas terras e hoje chegou a hora de cobrar!"
A estratégia funcionou brilhantemente. A tribo logo correu para suas ocas e Bartolomeu se viu sozinho novamente no meio daquela aldeia, ouvindo apenas o fogo bruxuleando ao seu lado. Com o sucesso de sua jogada, Bartolomeu ajoelhou aos prantos, segurando fortemente um terço em sua mão e agradecendo a dádiva de sair vivo dali.
CLAP
CLAP
CLAP
Bartolomeu olhou assustado e viu um homem alvo, roupas da nobreza portuguesa, um cabelo muito negro e alinhado, como se acabara de sair da tina de banho, batendo palmas lentamente. "Belo show, Bartolomeu. Agora se levante que temos muito que conversar". Bartolomeu se levantou assustado, olhando em volta. Dentro das ocas não se ouvia uma respiração.
"Qu-quem é você? Você fala minha língua?"
"Sou o Demônio, oras. E falo todas as línguas. Que pergunta, você acabou de me chamar! Ou você realmente achou que seu showzinho assustou aqueles guerreiros?", Bartolomeu olhava atônito para o senhor. Nunca vira alguém tão refinado na vida, era como se seu corpo estivesse constantemente a se ajoelhar de referência para ele.
"A notícia boa é que seu filho está bem", Bartolomeu soltou um grande soluço e desabou no chão, abraçado no pequeno crucifixo.
"O que você quiser, pode pedir, é seu. Te dou todo o ouro dos Goyazes, monsenhor. Tenho mais ouro guardado em minha casa."
"Guarde seu metal para você, velho Bartolomeu, ele não me serve de nada.”
“Pegue minha alma, monsenhor. Minha vida. Apenas poupe meu filho, faça-o voltar vivo para a Capital e seguir uma vida longe das matas e matanças”.
“Eu faço os termos aqui. Mas não se preocupe, todos saíremos ganhando dessa conversa. Seu filho será um explorador como você, porém muito mais sucedido. Toda essa terra que estamos aqui será dele e ele terá todo o ouro que um homem pode ter em sua vida. Ainda mais, o nome dele ficará na história destas terras para sempre e o seu também, de certa forma.”
“E qual o seu preço, velho diabo? Diga-me logo e diga-me onde está o pequeno Bartolomeu!”
“Espere mais um pouco, homem! Minha fala ao meu tempo. Por trezentos anos essa terra prosperará. Grandes civilizações nascerão aqui e tudo o que se plantar vai nascer. Quando o ouro acabar, o gado e o café garantirão a riqueza do povo de seu filho. Mas…”
“Demônio, diga seus termos de uma vez!”
“Mas assim que esses trezentos anos se findarem, essa terra volta a ser minha. A loucura e o caos reinarão. Pais matarão seus primogênitos, crianças deformadas sairão dos ventres, e tudo será tratado como algo normal e corriqueiro”.
“E a gente? O que você quer da gente?”
“De você, Bartolomeu? Apenas jogue seu cantil na fogueira para selarmos nosso contrato e você terá seu filho de volta”.
Bartolomeu descartou seu cantil que virou cinzas e fumaça de uma só vez. Então tudo ficou escuro e acordou no meio da mata novamente. O sol já no centro do céu enquanto Manoel Raposo batia em sua cara. “Você tem um garoto de ouro. Você desmaiou e seu filho tem cuidado de você desde então. Como vocês não chegaram, voltamos para procurá-los e encontramos os dois deitados à beira da mata”. Bartolomeu abraçou seu filho fortemente, enquanto chorava. A expedição continuou e em dois dias acharam o caminho para o Rio Vermelho, onde acharam indícios de ouro por todo seu trajeto.
Durante os anos seguintes, Bartolomeu sonhou com o homem alvo e arrumado, mostrando pedras que matavam, máquinas que voavam e pessoas sendo transmitidas por todo o planeta contando sobre suas próprias maldades. Ele nunca contou para seu filho sobre o encontro que teve na mata aquela noite.

Seu filho despontou cada vez mais como um grande explorador e um dia, bem mais velho, foi a corte do Rei D. João para pedir permissão de explorar as terras em que seu pai achou indícios de ouro há anos. Quando voltou para casa para contar as boas novas, encontrou-o morto em sua cama.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Contrato em letras miúdas.

Releu cada sentença
Assinado ante a presença
De testemunha e advogado.

Assinou com gosto já sem sentir o gosto
Do amargo dos seus lábios sobre seu rosto

O sorriso vazio, quase cordial
Decretou o fim daquele casal
Numa mesa fria de madeira, no fundo do tribunal
E em plena quarta feira,
Repensa tudo aquilo que jurou.

O passado estava escrito,
O futuro revisto, revisado
Quando saiu um de cada lado
Sem atrito e assinado
Terminando de papel passado
O que juraram nunca acabar.

terça-feira, 14 de julho de 2015

O roxo.

Tenho tomado tanto soco na boca recentemente
que acho até que consertaram meus dentes.
Literal e metaforicamente.

Antes tivesse tomado algo pra esquecer
Doses cavalares de um eterno clichê
Na minha veia vendo o sangue correr

Mas eles dizem que o tempo sempre cura
Que qualquer doce é bom pra tirar amargura
Que só cai mesmo quem tem medo de altura

E quando o tempo passa e tudo aquilo acaba
O roxo na cara quase não marca
A conta da mesa já está paga

O último que sair, por favor, apaga a luz.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Contato.


Ele tentava inutilmente equilibrar um livro rodando-o sobre o dedo. Ela observava de longe, rindo discretamente para não chamar a atenção. Ela não sabe se ele lembrava que eles se conheciam, tinha morado no mesmo condomínio na infância e desde aquela época ela mantinha um fascínio por ele. O jeito meio estabanado e distraído dele sempre o colocava em grandes encrencas, como a vez que ele foi pego de madrugada pijamas pulando o muro do vizinho dizendo que tinha deixado sua bola mágica cair no outro lado. Coisa de criança. Enquanto a vizinhança ria do menino avoado da casa de esquina, ela, mais nova que ele, sonhava em um dia também ter uma bola mágica. Pouco tempo depois a família do garoto se mudou e eles nunca mais se viram. Até aquele dia, uma terça-feira a noite, voltando do metrô. Ela lia uma revista dessas de dicas de relacionamento quando um barulho a chamou atenção. Um sujeito deixara seu livro cair. Era ele, impossível não reconhecer o nariz levemente torto e a cara de avoado. Ele continua tentando equilibrar seu livro, meio sem jeito, como uma bola de basquete. Ela ficou pensando como as coisas poderiam ter sido caso sua família não tivesse se mudado. Viu eles crescerem juntos, brincarem. Ela roubando o primeiro beijo dele, que até então não tinha notado que ela gostava dele.  Eles de mãos dadas no colégio, as pessoas rindo dos dois. Ela saindo apressada com seu fichário, com vergonha, deixando ele pra trás sem entender. Ela percebendo que ele tinha ficado parado e voltando pra puxá-lo pela mão do meio do pátio, onde todos ainda riam deles. Eles, agora um pouco mais velhos, indo no cinema pela primeira vez, assistindo um filme bobo que a fizera chorar sem parar enquanto ele não sabia como reagir àquela situação. Ele ajudando ela a estudar para o vestibular. Ela ensinando ele, já mais velho, a andar de bicicleta. Outro barulho chama sua atenção. O livro cai de novo, ele se levanta sem jeito pra buscar o livro distante, já guardando o livro dentro da mochila e se preparando para descer. Ela toma coragem, desliga o iPod e vai falar com ele. 
"Oi, Flávio! Lembra de mim? A Fernanda que morava no Condomínio do Parque?", ele olha pra ela meio confuso mas logo abre um sorriso e a abraça. "Claro que lembro! Por onde tem andado, como vão seus pais?", ela começa a contar sobre a separação e que ela tinha se formado em odontologia, que estava trabalhando a duas estações dali, mas ela a interrompe e se despede: "Eu desço aqui, mas que bom te ver! Vamos manter contato!".

Ela sorri mas seu sorriso vai diminuindo com o afastar do metrô. Ele parecia ainda ser um garoto legal. Quem sabe outro dia?

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Abriu os olhos.




Ele abriu seus olhos e foi o maior baque que já teve na vida. Tudo tava diferente da cadeira onde ele sentava. Não reconhecia as pessoas, os lugares. Seu pensamento não entendia. Tinha sido meio segundo de olho fechado, como as coisas poderiam ter mudado tanto?
Seus amigos não eram mais tão legais, sua família não era exemplo. Seu emprego não fazia mais sentido, suas vontades se perderam no tempo. O que ele ouvia não fazia sentido, mesmo sendo no velho português e passando em todas as correções de coesão e coerência. Onde ele esteve nesse meio segundo?
As cores também tinham mudado, mesmo sabendo que estavam todas iguais. Seu cérebro não assimilava mais o azul e o vermelho. Até a organização das coisas em sua mesa parecia ter sido planejada para o incomodar. Sem saber o que mudou, ele andou por horas sem se comunicar com ninguém. 
Seu celular, agora só um objeto de metal que vibrava e apitava sem parar, foi arremessado distante contra o riacho de uma ponte que passou. 
A caminhada fazia sentido ainda, a direção não mais. Respirar, olhar para os lados antes de atravessar as ruas. Ele entendia o conceito de carro, só não era exatamente aquilo que ele estava enxergando.
Andou por horas até não conseguir mais e sentou em um morro no fim da cidade para observar o cenário. Os prédios, o trânsito, a vida das minúsculas pessoas. De longe, nada daquilo fazia mais sentido.
Ele abriu os olhos de novo, e agora tudo estava normal. Ele estava novamente na cadeira onde sentava. Um segundo tinha se passado desde que ele tinha fechado os olhos. Ele ajeitou sua coluna como o médico tinha orientado.

Em um lugar muito distante, um ser pensou satisfeito: "O recado foi dado".

segunda-feira, 16 de março de 2015

Viajante.




É o terceiro planeta que visito essa semana. Se bem que o conceito de "dias" e "semanas" ficou na Terra há muito tempo. Tempo. Outro conceito que mudou muito desde então. Usamos o conceito convencionado, mas nós, viajantes, marcamos o tempo como forma de nos manter sãos.
Lembro quando voltei da minha primeira viagem e parecia que tudo tinha dado errado. Eu tinha literalmente viajado para o futuro e não era nada bom. Com a diferença que não tinha volta.
A cama é a Máquina do Tempo menos eficiente, mas a mais usada. Você deita, desliga o cérebro por algumas horas e acorda horas depois e na sua cabeça demorou segundos. Considerando um sono normal de 6 horas com uma percepção de tempo em que você se sente dormindo exatamente de um minuto, temos uma máquina com eficiência 1/360. Minha primeira viagem teve eficiência de 1/100000. Na prática, cada minuto fora uma semana na Terra. Fiquei dois dias e meio viajando, voltei haviam passado 70 anos. Foi surreal.
As relações hoje são bem diferentes. Nós, viajantes, não podemos nos dar ao luxo de nos apegar. Como na época das Grandes Guerras, onde quem saía não tinha a certeza de que iria voltar, hoje quem sai não tem a certeza de que haverá algo para voltar. Mas sabemos o risco e sempre começamos de novo e de novo em outro lugar.
Os dados chegam a tempo, as pessoas não. Então as pessoas terminam suas pesquisas e já recebem sua próxima missão. É um estilo de vida. Tem quem escolha viver no mesmo lugar sempre: nasce, cresce, reproduz e morre. A vida mais básica possível. Nós não temos lar. Nosso lar é nossa nave, nosso tempo é relativo. Não temos passado nem futuro porque nunca sabemos onde vamos parar e o que aconteceu pode ter sido ontem ou há milhares de anos.
Pensávamos que sem o tempo não teríamos movimento, mas quando você percebe que o tempo não é mais referência, o cérebro trava. Meu referencial não é o mesmo que o seu, o que antes era uma impressão agora é uma certeza. O tempo não passa da mesma forma de acordo com sua posição espacial, como ele poderia ser linear?
Ainda assim, em uma semana no tempo oficial do meu próprio veículo e única constante em minhas viagens, eu já estava no terceiro planeta. Anotando panoramas gerais, rochas, seres vivos, gases presentes e enviando pra Central de onde um dia eu saí.
A cada contato que faço para enviar as informações coletadas, temos uma pessoa nova me atendendo, com a anterior já aposentada. Quanto mais distante eu viajo, menos tempo dura a carreira de quem está do outro lado. É triste saber que nunca voltarei para onde eu nasci e cresci. Que aquelas pessoas provavelmente morreram há anos, que a cultura que eu vivi já foi derrubada.
Só nos resta as estações, onde encontramos outros viajantes, com ínfimas chances de encontrar alguém mais de uma vez. Lá atualizam nossas informações com as últimas descobertas e nossas naves com as últimas tecnologias, e assim continuamos nossa viagem. Sem hora marcada, sem passagem de volta. O tempo é tão individual quanto o pensamento.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Da janela do meu quarto eu vejo a Terra.


Meu pai trouxe um telescópio que não estava mais sendo usado no laboratório e instalou no meu quarto. Falou que era para eu conhecer as estrelas e para que eu fosse cientista como ele quando crescesse.
Dizem que no passado, pouco antes da gente chegar aqui, o estudo das estrelas eram bem diferente. Esses telescópios e uns satélites flutuando no espaço era tudo que nós tínhamos. Minha professora de história dizia que demorou anos para conseguirmos pousar na Lua, antigo satélite natural de onde morávamos.
A Terceira Grande Guerra causou a evasão. Não só porque praticamente destruímos tudo, mas pela corrida espacial para ver quem deixaria o planeta primeiro. E enquanto os menos favorecidos se degladiavam e se matavam em campos de batalha, cientistas recebiam financiamento absurdos dos maiores governos para desenvolver o o que mudou tudo: a viagem espacial numa velocidade maior que a da luz.
Os primeiros satélites com a tecnologia conseguiram mapear rapidamente o universo para catalogar todos os planetas com condições favoráveis para a vida. Pouco tempo depois veio a primeira missão tripulada, a primeira colônia e aos poucos as grandes nações fugiram da Terra. Isso foi há alguns séculos atrás.
Eu vivo com meu pai em um planeta muito bacana. Cheio de montanhas e fiordes. É um planeta para cientistas. Nasci aqui a partir do DNA dos meus pais. Visitei um outro planeta quando eu era mais novo, mas eu nem lembro mais. Meu pai disse que eu me diverti muito e que eu posso voltar lá quando eu era mais velho.
O interessante da viagem acima da velocidade da luz é que podemos estudar a história de maneira mais concreta. Por exemplo, da janela do meu quarto eu vejo a Terra. Mas não é a Terra de hoje, inóspita e destruída pela ganância de um sistema que pregava o acúmulo de bens e poderes. É a Terra de muitos anos atrás, cheia de animais gigantescos caminhando e vivendo pacificamente à sua maneira.
Estranho como conseguimos destruir um planeta tão rico. Hoje vivemos em colônias há anos-luz de distância uma da outra, com todo o mapeamento do universo, não conseguimos achar um planeta que resumisse tantos ecossistemas como foi a Terra.
Dependendo da angulação do telescópio consigo enxergar eras e eras de evolução, mas o nosso tempo (o tempo humano que adotamos como padrão) é muito delicado. Um pequeno desvio e a Terra desaparece em uma época pré-formação.
Gosto de estudar principalmente a época dos grandes gênios. Pessoas que analisavam e quebravam paradigmas com poucos recursos. Platão, Newton, Einstein, Hawkings, Phillips. Temos representações deles em todas as escolas, onde podemos conversar com simulacros e entender melhor como eles conseguiram enxergar tão pra frente de seu tempo.
Hoje a gente viaja mais rápido que a informação. Isso irrita um pouco. Todos os paradigmas foram quebrados, a ciência é tão banal que deixamos de lado o espanto. Nenhuma descoberta é grande o suficiente para nos assustar. No tempo que as máquinas existiam, cada novidade era um grande passo. Hoje cada ser vivo já nasce com máquinas para calcular variáveis infinitas.
Meu pai estuda uma maneira de podermos ver o futuro através de grandes espelhos nos limites do universo, mas tudo ainda é embrionário. Isso e conseguirmos nos locomover fisicamente através do tempo. São os últimos grandes passos.
E cada vez que saber de tudo isso deixa minha vida entediante, eu vou para meu quarto e observo a Terra. Onde tudo era mais simples, tudo era uma grande surpresa, onde as pessoas eram mais... interessantes.