quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Recorte.

Na janela, um recorte da cidade
Na fotografia, um recorte do tempo
No espelho, um recorte de mim
Na memória, só o que eu me lembro

Isolar um pedaço para emular o todo
Enfeitar sua parede com um quadro torto
Uma pequena irregularidade em seu controle
Contra todo o descontrole de um dia morto

Troca a roupa, o cabelo
O sorriso e a mão
Pois trocar de quem se é
Está fora de cogitação

A inquietude da perna acompanha o relógio
Dezoito horas se aproxima a passos lentos
Uma linha fina entre o amor e o ódio
Que dissipa e se confunde com o passar do tempo

Porque o recorte do tempo quando se imita
Se resume a reviver sempre seu próprio fim
Como um ciclo infinito se repetindo em vida
E as mesmas motivações ditas para mim

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Caça.

Um bicho faminto
O confunde com presa
Afiando suas presas
E vasculhando o recinto
Jogado-se fora
Fazendo frio lá fora
Você percebe que a hora
De ir embora chegou
Se coragem te falta
De falar em voz alta
E por fim, não adianta
Pois um grito espanta
Predador acuado
Caçador assustado
E é você que resiste
Se ainda existe
Algo em que se apoiar
É esse o caminho,
Não é preciso ir sozinho
Mas é melhor levantar

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Meu jeito.

Meu jeito de me vestir
A cara quando como algo ruim
O pé que mexe a noite
Meu tique com o anel
A boca quando me concentro
A lágrima em filme bobo
O tempero na comida
O carinho na barriga
Meu cheiro pós-banho
Como cheiro sua nuca
Deitado no chão
Mudando o canal
Seguro a porta
Falo por favor
Peço desculpas
Franzo a testa
Testo sua pele
Faço cosquinhas
Enxugo suas lágrimas
Piada fora de hora
Com o tema errado
Converso demais
Com você e seus amigos
Falo o que não devo
Busco aprovação
A noite, sozinho, o travesseiro recebe
As energias acumuladas
Em transações banais
No sonho, sou leve
Acordo melhor
O amanhã sempre chega
E dissipa a dor

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Broca.

Minha vida me ensinou uma estratégia simples de lidar com frustrações: se eu não vou ter, eu não vou nem querer. O que é bom demais porque evitou que eu sofresse desnecessariamente por diversas coisas ao longo desses quase trinta anos. Esperar tudo estar certo, e acontecendo, pra me empolgar evitou que eu criasse expectativas em diversas situações onde as coisas não se realizaram. Da mesma forma, me blindou demais ao pegar os pequenos sinais de que as coisas dariam errado, em momentos ou em pessoas, e me apoiar naquilo na minha preparação e alinhamento de expectativas. Nisso, foram raríssimas as vezes que as pessoas me surpreenderam, negativa ou positivamente, já que meu cérebro já me preparou para todas as variáveis que eu consegui simular na minha cabeça. Como o Doutor Estranho no filme do Vingadores onde todo mundo morre porque as possibilidades eram gigantemente maiores que todo mundo fosse morrer mesmo. Mas uma vida quase livre de decepções cobra seu preço e na terapia descobri qual era: simplesmente perdi parte da capacidade de sonhar. Não o sonho automático do nosso subconsciente quando estamos em modo descanso durante a noite, mas o sonho de traçar planos (quase) impossíveis para continuar e seguir em frente. Meu superpoder de saber que as coisas podem dar e geralmente dão errado me cegou para aquela pequena chance das coisas realmente darem certo. E não é nem que eu PENSO que não vai dar certo, muitas vezes meu cérebro nem sequer cogita a possibilidade de algo acontecer tão escorado na possibilidade dela não acontecer que existe. "Quais são seus sonhos?" foi a pergunta-gatilho dessa vez, e minha resposta foi um pequeno passo de onde eu estou. Tenho muito orgulho de estar aqui, mas é triste entender que cheguei aqui em pequenos passos possíveis, que, apesar de desejar o grande, ele é tão distante da minha realidade que é como se não existisse. E a cada pequeno passo eu calculo os próximos passos seguros e possíveis, no máximo alguns passos à frente. Porque a estrada distante só existe realmente quando eu estiver lá e me empolgar com um prospecto tão "improvável" é algo que eu guardo pra quando eu estiver realmente. Como tantas outras coisas que me privaram e me privei, a capacidade de sonhar longe é uma das que mais eu sinto falta. Não existe um manual para mudar isso, não tem uma técnica que eu possa treinar e mudar meu pensamento. Sigo na terapia, que atualmente tem sido meus pequenos passos, mas algumas coisas estão tão intrínsecas a mim que vou precisar de uma broca mais dura para encontrar.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Cheiro.

Você saiu mas ficou o cheiro
Do seu cabelo no meu travesseiro
Mesmo quando troco a roupa de cama
Lembro da sua roupa do lado da cama
Sua voz baixa dizendo que me ama
Vestindo minha camiseta de pijama
Seu dedo deslizava na minha nuca
Nunca pensei que diria isso
Seu jeito ausente que me machuca
Sua presença que criou o vício
Porque quando você teve que ir embora
E nada que eu fizesse impediria essa hora
Afundei meu rosto na tentativa ilusória
De que seu cheiro também impregnasse minha memória

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O Verbo.

No início era apenas o Verbo
Com ele aprendi o que era certo
O errado veio como consequência

Nos primeiros passos foi minha ferramenta
Depois foi meu refúgio
O fogo que me esquenta
Na lareira de um quarto escuro
Minha arma sempre pronta
Uma faca afiada
Como um mergulho de ponta
Que rompe a tensão de entrar na água
Em algum momento virei seu escravo
Preso na coerência da linha reta
No que eu digo e no que eu faço
No que entendo como coisa certa

Estou parado em uma encruzilhada
Torcendo os trilhos com minhas próprias mãos
Fazendo aproximar as duas estradas
Mesmo que caminhem em outra direção
O verbo é meu lugar-comum
Minha morada, meu conforto
Sou o monge em jejum
Lutando para não estar morto

O verbo prende, a mente salva
Mas o caminho não é fácil
Se a palavra foi minha armadura
A mente é meu ponto frágil