quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A Cela.



Quando ele virou, meu punho já estava perto demais da sua mandíbula para desviar. Aproveitei a confusão para agir. Foram sete alvoradas até eu não aguentar mais. Não sou um cara violento, mas também tenho minhas fraquezas, meus gatilhos. Sem minhas armas, fui obrigado a recorrer às técnicas do meu avô, que tinha ganhado um porco em uma feira por causa do seu soco potente.
Minha última missão não terminou bem. Fui reconhecido e pego de surpresa por um bando de mercenários. Agora estou nessa cela limpando o sangue da minha mão na roupa do sujeito que derrubei. Lá fora ninguém percebeu a movimentação, mas logo ele vai acordar e começar a chamar os guardas.
Estou há uma semana sem falar uma palavra, esperando o juiz chegar em sua diligência com ar pomposo e provavelmente minha condenação. Com meu rosto retratado em cartazes por toda a vila, eventualmente alguém seria mais esperto que eu. Estou aqui, não estou?
Meu companheiro de cela, agora um corpo desacordado ocupando o pouco espaço que dividimos, não teve tanta sorte. Preso por se engraçar com uma das filhas do xerife, não parava de falar um minuto. Contava vantagem sobre as mulheres que conheceu, os duelos que ganhou, mil trambicagens e malandragens que o fez sobreviver até chegar nessa cela com cheiro de mofo. Puxava conversa com outros presos, com os guardas, com os visitantes.
Tenho um receio de gente expansiva. Acabam falando demais para ganhar confiança dos outros. Contam vantagem achando que assim as pessoas vão gostar mais delas, mas eu não caio nessa. Conheço o tipo. Finge que é seu amigo para depois pedir favor. Gente que eu não quero perto nem nessa nem na próxima vida.
E assim eu ouvi ele me provocar nos últimos dias. Os guardas, se divertindo com meu mau humor, contavam histórias e lendas sobre mim. Ele perguntava sobre meus pais, minha família, meu cavalo, criava histórias para justificar meu silêncio. Aprendi a manter minha cabeça longe das coisas que me faziam mal. Enquanto eles conversavam, fechava os olhos e me via cavalgando por grandes planícies, a poeira levantando atrás de mim, nenhuma índole ruim em milhas e milhas de distância.
Foi quando ouvi o nome dela. Aparentemente fiquei repetindo um nome enquanto dormia, um dos guardas ouviu e contou para ele. Era minha filha? Minha esposa? Uma cabritinha que eu abusava na fazenda onde cresci? Continuei calado, impassível, esperando meu momento. Ele continuava me provocando, queria conhecer meus limites. É fácil ficar quieto quando se passa o tempo todo sozinho.
Não demorou até o Sol se pôr para alguma confusão chamar a atenção dos guardas. De repente estávamos apenas eu e ele na cela. Sozinhos. Finalmente. Ele distraído, já que eu pouco me movia desde que cheguei ali, se espremia contra a grade para saber o que estava acontecendo. Quando ele virou, meu punho já estava perto demais da sua mandíbula para desviar. O corpo caiu seco como um toco e eu voltei para meu canto da cela, esperando a confusão lá fora acalmar e os guardas voltarem.
O barulho acabou de repente, foi quando comecei a pensar o que poderia ter causado esse alvoroço. Um assalto ao saloon da cidade, algum duelo na rua principal. Nada justificava a demora dos guardas. A porta se abriu, e eu vi alguém se aproximando. Uma silhueta que eu reconheceria mesmo contra a luz de vela mais fraca.
"Achei seu cavalo vagando sozinho e imaginei que você estava precisando de ajuda, ele me trouxe até aqui. Parece que você não fez muitos amigos nessa cidade."
"Maldito Faísca," eu pensei enquanto pegava as armas dos guardas caídos no chão, "tanta gente no mundo e me traz a última pessoa que eu gostaria de ver".
Passei a mão na crina do meu cavalo, que parecia feliz em me ver. Enquanto arrumava minhas encomendas em suas costas, tentei quebrar o gelo: "Se eu disser que eu estava falando sobre você agora a pouco você não acreditaria, Annabelle", ela nem sorriu.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O Cavalo.


Às vezes, a estrada é muito solitária, mas a gente se distrái como pode. Deitei ao lado de um trilho com Faísca, meu alazão, e fiquei formando imagens com as estrelas. Minha vó sempre dizia que os deuses antigos moravam lá, mas eu achava complicado. Devia ser frio e solitário demais para alguém morar ali.
Não que minha vida fosse muito diferente. Passo dias andando por terras sem mato nem rio, montando fogueiras à noite para afastar os chacais, em companhia só do meu cavalo. O último irmão que me sobrou. Um por um os outros foram assassinados por ladrões, xerifes, índios e cafetinas. Nós éramos dezessete quando comecei, hoje somos dois. Eu e o Faísca.
Ele não é de falar muito, então a maior parte do tempo eu divago sozinho, mas é um ótimo ouvinte. Seu olhar de repreensão quando conto minhas aventuras é mais duro do que a cinta de couro do meu velho pai.
Consigo listar vários motivos pelos quais cavalos são melhores que homens, mas o principal é eles não precisarem de dinheiro. Sem ganância não tem traição nem sangue. Seu propósito de vida é estar ao meu lado e meu propósito é estar ao lado dele.
Andamos mais de duas mil milhas juntos, fomos do sul ao norte do país em áreas que os peregrinos não chegaram a invadir. Carregando corpos e encomendas de um lado e sacos de dinheiro e mantimentos do outro.
Um companheiro que nunca me delataria, independente do valor da minha recompensa. Até ouvi uma vez em um bar que a cabeça do velho Faísca valia tanto quanto a minha. Junto viramos lendas. As pessoas já conhecem cada cicatriz da minha face e cada mancha de seu pêlo. O barulho do seu trote já é o suficiente para amedrontar os mais corajosos dos coiotes.
Faísca já pulou na frente de bala por mim, me salvou do enforcamento. Hoje, apontando para as estrelas, tento mostrar que aquele grupo ali no canto formam uma cabeça de cavalo, provavelmente de algum ancestral dele, um rei antigo das terras além-mar. Minha vó contava sobre homens com cabeças de cavalo com poderes maravilhosos, mil mulheres, mil tesouros. Gostava de acreditar que era nosso ancestral comum.
Ele parecia sonolento, eu com a cabeça em sua barriga e o chapéu cobrindo meus olhos. O poncho de lã esquentava meu peito e a fogueira esquentava meu pé. Andar por essas bandas era perigoso essa época do ano, mas ao lado do meu cavalo, não tinha medo de nada.
Ainda não tinha amanhecido quando o chão começou a tremer. Nos levantamos rápido, apaguei a fogueira com areia, peguei minhas bolsas no chão e nos preparamos. Mais alguns minutos e conseguimos ver a fumaça da locomotiva aparecendo no horizonte. Atrasada, como sempre.
Eu e meu cavalo começamos a correr para poder alcançar o trem em movimento. Quanto mais ele se aproximava, mais o chão tremia e mais rápido nós corríamos. Apertei a colt na cintura, e fui aos pouco me preparando para o pulo. Até que a locomotiva nos alcançou e nos passou a toda velocidade.
Eu tinha alguns segundos para acertar exatamente meu salto. Os vagões passavam enquanto eu calculava mentalmente a hora certa de pular. Não é como se fosse meu primeiro assalto em um trem, mas cada um que faço eu rezo para ser o último. Odiava toda essa tensão. Só mais um segundo e… Um pouso quase perfeito no último vagão. Pelas lamparinas que foram se acendendo nos momentos que se seguiram, devo ter feito bastante barulho quando caí.
Olhei para trás e vi meu companheiro diminuindo a medida que nos afastávamos. Ele sabia onde me encontrar: seguir o trilho até a próxima estação e esperar até o sol se pôr novamente, mas ainda assim partia meu coração abandoná-lo novamente. Um nobre senhor abriu a portinhola de acesso para ver o que estava acontecendo, bom que não precisei nem liberar uma das mãos para rendê-lo. Meu Faísca não estava mais a vista, era hora de fazer meu trabalho.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O Cowboy.


A porta do saloon ainda se fechava atrás de mim e o bar inteiro já me olhava. Meu rosto e meu nome eram conhecidos por essas bandas. Caminhei devagar até o balcão e pedi o whisky mais velho da casa. Virei o copo e a cadeira. O lugar inteiro ainda me olhava. "Perderam alguma coisa?", eu gritei. Todos voltaram a fazer o que quer que estivessem fazendo, o nervosismo denunciado pelo suor em suas testas. Mas como culpá-los? Está quente como nunca se viu e eu, eu realmente sou uma ameaça.
Meu rosto está no cartaz de "Procurado" lá fora e a recompensa não é baixa. Se fosse outra pessoa eu mesmo estaria me caçando. As pessoas que matei, as cargas que roubei, as vilas que transformei em cidades-fantasmas. Meu nome se espalhou mais rápido que barril de pólvora explodindo. E eu gostava disso. Gostava de chegar em uma cidade desconhecida e todos me conhecerem.
O barman tremia mais que trem descarrilado, quando perguntei pra ele se nessa cidade tinha um boticário. Seu dedo apontou para um velho senhor sentado no fim do balcão, com uma pastinha velha e um monóculo. Típico. Peguei mais uma dose e sentei ao seu lado.
"Você sabe quem eu sou?", o senhor confirmou com a cabeça, tentando mostrar firmeza e coragem. "Então você sabe porque eu estou aqui", novamente ele confirmou com a cabeça. Virei meu copo mais uma vez e pedi para me acompanhar. Gostava quando colaboravam, ter que sacar a arma por qualquer bobagem tirava minha credibilidade. Preferia apontar para alguém só quando estivesse disposto a disparar e aquele pobre cientista não precisava disso.
O senhor me guiou até a pensão onde estava hospedado, entrou em seu quarto e voltou com uma maleta de couro, provavelmente costurada por uma das tribos que viviam por essas terras antes da invasão. Abri com cuidado e conferi os pequenos frascos cheios de líquidos coloridos.
"Você sabe que pagam uma grana preta por isso aqui lá no Norte, né?", tentei puxar assunto. "Não quero saber, você já tem o que você quer", velhinho insolente. Devia apagar ele agora mesmo. Deixaria um agrado para as meretrizes que estavam no saguão de entrada e elas nunca teriam me visto aqui.
Fechei a maleta e me preparei para ir embora, quando reparei o velho nervoso demais. Em uma fração de segundo, levantei, dei um chute para desmontá-o e encostei minha colt em sua testa. O velho chorava descontroladamente ao lado da pequena Remington que tentara inutilmente sacar. "Velho idiota! Você acha que ia me derrubar com uma ou duas balas? Eu mataria essa cidade inteira antes de você conseguir me apontar uma arma!". Com um chute forte na barriga, eu me despedi do velho e da cidade. Peguei meu cavalo na porta do saloon e rumei para fora da cidade.
Olhei para trás e o pôr-do-sol pintava toda a cidade de vermelho. Meu coração era duro, mas eu sabia apreciar uma boa vista. Parei por alguns segundos. Odiava quando as coisas caminhavam para a violência. Afrouxei meu coltre e me preparei para a longa caminhada que eu tinha pela frente. Pessoas para conhecer, produtos para entregar. Não tem sido fácil essa vida de cowboy.