quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Desvio (Inktober #004)

Você viu? Mas foi quase que me pegou em cheio. Eu estava sim distraído mas não quer dizer que eu mereça a maior das punições. Ou um alívio? Quem sabe o mesmo motivo que me levou até ali, essa distração consequência de aprender mais sobre si mesmo do que gostaria, essa eterna sessão de terapia que é a vida. Que te deixa atordoado te mostrando que pouco do que você faz importa, mas importa muito pra quem você faz, e que nada disso vai garantir que coisas boas vão acontecer, por exemplo, do nada, você distraído pode ser seu último momento.
Lembro dele sair do carro, também atordoado, pedindo desculpas, sem saber direito o que aconteceu. Eu estava bem, do que ele estava falando? Olha só, eu o conheço, mas de onde mesmo? Eu preciso ir, não consigo conversar agora, tive um dia muito difícil.
Mas às vezes, é quando você senta que realmente te acerta. Só são e salvo com a proteção da distância que você percebe que aquele rápido desvio sem pensar poderia ter custado muito mais do que um susto. Seu desvio do caminho pra ter tempo pra pensar sobre tudo que você não queria pensar, que ironia, podia resultar na solução final de todos os problemas. Todos os traumas, todos os pesos, os conhecimentos não bem-vindos, as noites de choros e os desesperos acabariam ali no desvio rápido de um carro em alta velocidade.
Um pequeno desvio fruto de uma pequena distração e tudo muda.

Caminhos (Inktober #003)

A gente sempre se pergunta se a gente tomou o melhor do caminho, principalmente quando lá na frente a estrada começa a parecer perigosa. Os “e se” tomam conta da cabeça pensando quão mais rápido ou mais longe chegaríamos se um outro caminho tivesse sido tomado. Que outras pessoas teríamos conhecidos e que outras comidas teríamos provados. Todos os banheiros de rodoviária catalogados e salgados que nunca experimentamos.
Mas a verdade é que o caminho é sempre um só, o caminho que foi passado. Não existe nenhum outro além do que o que você seguiu. Aliás, até que existe. O caminho dos outros está aí pra todo mundo ver. Principalmente pra alguns, as vitórias acabam sendo tão expostas, que esquecemos que cada um teve suas dificuldades pra chegar até ali. Ou mesmo, quando nos comparamos, nem sempre é claro que algumas pessoas tiveram caronas, ajudas, desvios ou atalhos. Fica apenas o sentimento de que fracassamos por não estar onde o outro está.
Enquanto a mim, eu sou estou aqui, onde eu acho que deveria estar fazendo o melhor que eu posso com as ferramentas que eu tenho na mão.

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Aranhas (Inktober #002)

Você ria do meu medo de aranha, como se não fosse normal temer o desconhecido. E pra mim uma aranha é tão desconhecida e perigosa como um leão na Savana. O leão, no entanto, é uma ameaça muito visível o que me dá a falsa impressão de que eu poderia me proteger. A aranha num piscar de olhos se esconde no canto de um móvel como quem planeja qual a forma menos dolorosa de me matar enquanto durmo. Convenhamos, esse é o melhor cenário, pois a aranha, destemida como só ela, pode escolher ficar parada por horas fora do alcance das nossas mãos apenas em um grande jogo de encarar pra ver quem pisca primeiro. Eu, nervoso como sempre, já perdi o jogo ao mesmo tempo que não consigo parar de olhar.
Tento também ver o lado dela, em busca de comida e proteção pra suas filhas, as milhares de aranhas que em breve estarão prontos para o mundo. Eu, o monstro gigante que com uma enorme vassoura posso acabar com todos seus sonhos e tudo que ela construiu. Mal sabe ela do medo do gigante em encarar sua pequenez.
Será se as aranhas contam histórias de aranhas que sobreviveram? Aquelas que lutaram contra a grande ameaça que nós somos e com um ligeiro golpe de sorte, foram capaz de sobrepor a ameaça que assombrava sua família e sua cidade? Será se elas choram por aquelas que não sobreviveram? As que foram eliminadas em sprays inseticidas, esmagadas ou capturadas para a morte?
Às vezes eu penso sobre minha própria insignificância ante o universo, às vezes eu penso sobre quão gigante eu posso ser. Em ambos os casos, eu ficaria feliz se você lidasse com a aranha no meu quarto.

Sonho (Inktober #001)

Já te contei que às vezes sonho com coisas que acontecem anos depois? Lugares que eu nunca estive, pessoas que eu não conheço, todas habitando um subconsciente que não tenho controle sobre e, muitas vezes, que some depois de alguns minutos acordado.
Quando eu te vi pela segunda vez tinha algo familiar na maneira como você gesticulava empolgada sem derrubar uma gota do vinho fora da taça. Reconheci seu sorriso com se fosse a própria projeção do meu desejo, materializada diante dos meus olhos.
Assim foram todas as outras dezenas de vezes que te vi, sempre com um ar de reconhecimento e admiração, algo mágico além do meu entendimento que eu só poderia interpretar como amor.
Dias e meses e anos se passaram, a gente se gostou e desgostou, ficou e separou, até que um dia simplesmente em uma noite tranquila todas as peças do quebra-cabeça se juntaram. Você casualmente riu de mim do canto da sua sala de estar e meu cérebro resgatou a memória de um sonho de anos atrás.
Foi lá que eu te vi pela primeira vez: sentada no canto da sua sala de estar, cabelo amarrado pra cima, a luz quente iluminando seus olhos e a planta. Lembro exatamente da sua risada rindo de mim ou de algo que eu falei. Mas eu não te conhecia ainda, não sabia dos seus gostos pra móveis e muito menos do jeito que você gostar de sentar com as duas pernas dobradas na poltrona.
Eu era apenas um garoto que acordou cansado de uma noite mal dormida com uma breve e ligeira memória de ter sonhado com alguém, e hoje observo como os sonhos se tornam realidade, por algum mecanismo do universo ou alguma falha no espaço tempo que vazou essa cena pra mim.
Assim como o sonho, o momento real passa e fica a confusão: será que isso realmente aconteceu ou é apenas meu cérebro e seus truques. O mistério de ver o futuro continua mas sua explicação mais uma vez se perde para a irrelevância quanto ao todo.