quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

O último conto de Natal.


Parte 1


Não entendi direito o convite dos Warrelys para visitá-los hoje a noite, mas como somos novos na cidade prometi pra mim mesmo que aproveitaria toda oportunidade de fazer amizades e conhecer melhor as pessoas da região. A Ana já avisou que não queria ir e usaria o bebê como desculpa.
Pobre Hugo, nem um ano de idade e já carregando a culpa da mãe.
Inclusive, ele foi o principal motivo para nos mudarmos. A vida agitada da cidade não acomodava os planos que tínhamos pra ele. Larguei meu emprego, juntamos nossas economias e viemos para cá. Longe da poluição, do stress, dos carros, das más influências. Um lugar onde nosso filho poderia brincar até tarde na rua enquanto eu e a Ana cozinhamos e bebemos um vinho. A Ana amava a cidade grande. A sensaçâo cosmopolita de estar onde tudo acontece, de ter algo pra fazer a um telefonema de distância, mas a gravidez bateu pesado demais. Primeiro se encheu de preocupações, ela achava que não seria boa mãe o suficiente, que o esqueceria dentro do carro ou algo assim. Depois veio a depressão. Não consigo descrever o medo que ela sentia quando via o pequeno Hugo. Repulsa, até. Com o tratamento isso passou e pudemos conversar melhor sobre o que esperávamos dele. Nos mudarmos veio naturalmente, até um pouco para deixar pra trás o período pesado que passamos.
Há um mês atrás chegamos em Lord Duph, uma pequena e pacata cidade a norte de tudo o que é desenvolvido. Inclusive, a posição foi estratégica. Fica no meio exato entre a cidade dos meus pais e a cidade dos pais delas. Até cogitamos nos mudar para mais perto da cidade natal da Ana, mas lembrar que os traumas que ela passou foram justamente por causa da relação conturbada com sua mãe não contaram muito a favor nesse quesito. E Lord Duph era tudo o que a gente poderia sonhar. Uma cidade antiga, onde todos se conhecem, escola de qualidade perto de casa, amigos que viram praticamente parte da família, todos morando um ao lado do outro e sempre dispostos a ajudar.
Nos mudamos para uma casa grande e aconchegante, cheia de quartos e corredores, com uma grande lareira e em um preço imperdível. Parece que o primogênito da família que morava lá se mudou para a capital e a família foi junto, deixando o lugar vago. A história pouco importava, o lugar era lindo principalmente nessa época do ano. Nos mudamos com o começo da neve, logo passamos o tempo entre a sala com a lareira e o quarto com o aquecedor. Era ótimo pois era uma desculpa a mais para estarmos sempre perto um do outro.
Enquanto eu fazia testes no pequeno jornal da cidade, a Ana cozinhava e mantinha a casa limpa. Desacostumada com um lugar daquele tamanho e com o trabalho de casa, a gente publicava todos os dias uma notinha no jornal em busca de uma governanta que pudesse nos ajudar com a casa e o bebê. Ninguém respondia, mas tínhamos decidido esperar pelo menos até o inverno passar pra realmente buscar alguém.
Logo em nosso primeiro dia, conhecemos o casal Warrelly. Toda a comunidade olhava de longe aquele caminhão de desconhecidos se mudando para a casa no meio da quadra, mas foram eles que vieram se apresentar e se prontificar para o que precisássemos. Ele, Arthur, um pouco calvo e com uma barriga proveniente dos seus cinquenta anos. Ela, Marta, arrumada como quem está sempre pronta para sair de casa, algumas plásticas aparentes e outras não tão aparentes assim. O sorriso aberto e a fala fácil nos fez nos sentir parte da comunidade imediatamente. Uma pena o resto da vizinhança com seus olhares curiosos e julgadores não transmitir a mesma receptividade.
Já na primeira semana eu fui atrás de uma espécie de estágio no jornal da cidade que parecia mais um teste para ver se eu poderia fazer parte do grupo. Conhecemos o dono da venda, o delegado local, a florista, o padre, o responsável pelo cinema da cidade. Todos nos atendiam muito bem mas mantinham um ar desconfiados com nossa presença. A sensação era sempre a de que nós não éramos dali e precisávamos nos provar ante a sociedade antes de ser totalmente aceitos por aquelas pessoas. Como a Ana não saía muito de casa, não percebia muito e até debochava um pouco das minhas desconfianças. Falava que logo passaria.
Ela riu ainda mais quando eu comecei a decorar nossa casa para o Natal. Nós decidimos que criaríamos nosso filho sem religião e tentaríamos evitar todo tipo de misticismo com o garoto, mas quando vi a cidade inteira comentando sobre o que fariam em suas casas, como seriam as celebrações, decidi que seria a hora de enturmar. Montei a árvore próximo a janela principal e comecei a decorar a fachada.
E foi enquanto tentava em vão colocar uma rena luminosa em nosso quintal que o Sr. Warrelly me abordou e perguntou o que eu estava fazendo. Inseguro pelo ar interiorano de sua fala e sem saber direito se era deboche ou uma dúvida real, respondi que estava decorando minha casa para o Natal, assim como as outras casas da rua. Com seu sorriso sempre aberto, ele disse “Ah… sobre isso. Vamos nos reunir lá em casa hoje a noite para fechar alguns pontos sobre o Natal desse ano. Você com certeza deveria ir lá”. Apesar de não entender direito o que seria discutido, fiquei animadíssimo com a oportunidade de mostrar àquelas pessoas que eu poderia ser um deles se eles me desse um pouco de abertura.


Parte 2


Na cidade grande, nossas visitas eram sempre a amigos próximos. Experiências casuais, onde eu não me dava o trabalho nem de colocar uma calça mais arrumada. Dessa vez escolhi minha melhor camisa, arrumei o cabelo, peguei uma garrafa do melhor vinho que tinha sobrevivido às crises e à mudança e saí de casa. A Ana ria da minha preoupação, falando que ia ser só uma reunião para decidir qual casa ficaria mais bem decorada ou algo assim. Deixei ela e o Bebê assistindo a uma reprise de um filme qualquer de Natal e fui até a maior casa do quarteirão, logo no começo da rua.
Cheguei lá e vi vários carros estacionados. Parece que todos da cidade foram convidados. O Sr. Warrelly me recebeu na porta antes que eu me anunciasse. “Só estávamos te esperando!”, ele disse com o mesmo sorriso aberto de sempre. Entrei, tirei meu cachecol e o observei enquanto guardava o vinho que eu levei. A sala dele era gigantesca. Muito iluminada e cheia de cristais, dava a mesma impressão de boas vindas que seus donos. A escadaria dupla rumo ao segundo andar lembrava de alguma forma o sorriso amplo do casal.
Parecia que toda a cidade estava lá, apesar de ninguém além da Sra. Warrelly ter se dado ao trabalho de me cumprimentar. Quando ela perguntou da Ana, sorri desconcertado dizendo que tinha ficado em casa com o Hugo, criança pequena, você sabe. Todos comiam pequenos petiscos em uma grande mesa de frios e bebiam vinho e champanhe.
Aproveitei que ninguém parecia ter notado minha presença para tentar ligar pra Ana e tentar convencê-la uma última vez a ir pra lá. Era nossa chance de sermos aceitos na cidade! O telefone tocou, tocou e nada. Provavelmente ela tinha aproveitado minha saída para dormir. Os serviços de casa e os cuidados do bebê eram bem cansativos. Uma pena, ela adoraria todo esse luxo.
Por muitas vezes tentei chamar a atenção do Sr. Warrelly para me explicar o que estávamos comemorando, mas com tanta gente em volta ele facilmente se distraia no meio de sua distribuição contínua de sorrisos. Minha dúvida durou pouco quando vi ele e a Sra. Warrelly subirem para o centro da escada dupla e baterem suas taças de cristal para chamar a atenção de todos. As pessoas se calaram e observaram a fala do casal.
“Queríamos agradecer a todos pela presença no nosso 21º Jantar de Natal da Família Warrelly, em homenagem aos falecidos Sr. Albert e Sra. Jane Warrely, meus pais, e em memória da última Noite Feliz em Lord Duph. Antes de mais nada, gostaríamos de parabenizar ao Oficial Winston pelo ótimo trabalho durante o ano, coibindo a depredação dos bens públicos e detendo a gangue de pertubadores responsável por espalhar mensagens de medo entre nossas crianças. Gostaríamos também de parabenizar a Sra. Faulkner pelos arranjos de flores que nos cedeu para a cerimônia deste ano e pelo ótimo trabalho nos canteiros centrais da prefeitura. O prefeito Taylor não pode comparecer este ano mas está representado por sua lindíssima esposa. Obrigado, Ângela.
Esse ano também temos uma pessoa nova entre nós, gostaria de apresentar-lhes Eugene Phillips. Venha, venha até aqui!”
Todos olhavam para mim, e ele realmente havia dito meu nome. Meio sem jeito, fui abrindo caminho até o centro da escadaria e me juntei ao casal Warrelly.
“Eugene se mudou para a cidade com sua esposa e filho e tenho certeza que eles estão muito dispostos a fazer parte de nossa comunidade. Seja bem vindo!”. Eu agradeci sem jeito enquanto ele me guiava para fora da escadaria e continuava sua fala. “Ano passado foi um grande desafio. Tivemos algumas perdas, é verdade, mas diria que o resultado final foi muito positivo. Esse ano o desafio será ainda maior. Que comecemos os preparos!”. Todos bateram palma e o casal se juntou às pessoas no salão.
Eu não estava entendendo nada, mas fui pela onda. Tentei mais uma vez conversar com o Sr. Warrelly, em vão. Peguei uma taça de vinho e encostei em uma das colunas de mármore que iam até o teto do pé direito duplo. Liguei mais uma vez para a Ana e nada dela atender. Comecei a ficar preocupado.
Percebi uma movimentação estranha das pessoas indo em direção a uma das salas que julguei ser a biblioteca e acompanhei eles observando um pouco a distância. Como em um filme, uma das estantes da biblioteca estava afastada da parede, revelando um portal de pedras e uma escadaria descendo. As pessoas foram descendo como se já soubessem o caminho, até que fiquei pra trás.
“Por que não se junta a eles?”, tomei um susto com a voz e o rosto sorridente da Sra. Warrelly atrás de mim. “Eu… não sabia se podia” no que ela respondeu ”Claro que pode, você é um de nós agora”. Desci a escadaria e observei a Sra. Warrelly fechando a estante atrás de nós. A pouca luminosidade oferecida pelas tochas na parede constratava em minha cabeça com o salão ultrailuminado que estávamos há alguns minutos.
Ela tocava minhas costas me empurrando para o fim das escadas, eu cada vez mais relutante e arrependido de ter ido até lá. O fim da escadaria revelou um salão escuro, provavelmente do tamanho do salão de cima, mas com paredes de pedra e uma longa mesa no centro onde meus vizinhos se acomodavam. A iuminação, toda por velas no centro da mesa e nas laterais das paredes, tornava aquilo muito assustador. A Sra. Warrelly me encaminhou para uma cadeira e se juntou ao seu marido na ponta da mesa.
No que ele chamou a atenção de todos e disse: “Anualmente, nos sacrificamos em honra daqueles que nos foram levados. Anualmente tentamos em vão capturar a entidade que nos condenou a tanto tempo de sofrimento. Há 21 anos essa cidade não dorme em paz sabendo que nossas crianças correm perigo”, o sorriso do casal tinha desaparecido. “Meu pequeno Elliot será sempre lembrado e vingado enfim. Essa ficará na história da cidade como: O Tempo que Capturamos o Pai Noel.”
Uma risada escapou da minha boca, no que todos do lugar me repreenderam. Não sei que tipo de grande piada era aquela mas aparentemente todo esse mistério era pra capturar o Papai Noel. Um tipo de seita bizarra que se reúne anualmente para capturar o bom velhinho. Só podia ser algum tipo de trote com o novato. Vendo que ninguém mais ria, me contive.
“Com a tradicional sinalização de nossas casas e oferenda de nossos bens, prepararemos alimentos sob nossas árvores e ficaremos a espreita desse monstro cruel que nos levou nosso filho”. De todas as cidades do mundo, vim parar numa cidade povoada por malucos. Tentei olhar em volta para pegar algum sinal de que tudo não passava de uma grande brincadeira, mas todos olhavam com seriedade para a direção do Sr. Warrelly.
“Em nossa última tentativa, falhamos e aquele monstro levou o primogênito da família Garrick. Bennedic não aguentou a dor e se mudou. Felizmente, para não quebrarmos a tradição Eugene ofereceu sua casa e família para acomodar nossos preparos”. Peraí! Aí foi demais! Me levantei: “ Não ofereci nada! Não estou entendo o que está acontecendo aqui, agradeço muito o convite mas cansei dessa palhaçada. Fique vocês aí com sua loucura de caçar o Papai Noel que eu estou indo para minha casa descansar que amanhã trabalho cedo.”
“COMO OUSA…”, o Sr. Warrelly disse exaltado, “insinuar que isso é uma brincadeira? Há vinte e um anos atrás vi esse ser abominável entrar em minha casa e mata meu filho. Com sua barba suja e sua roupa etérea levar chaminé acima meu único e amado filho e deixar apenas o eco de sua risada maléfica. Há vinte e um anos armamos a cidade inteira para nos vingar desse… esse…”, lágrimas escorriam de seus olhos agora, o que me deixava cada vez mais assustado, “esse demônio e talvez reaver meu filho de volta. Nenhuma família vive tranquila nessa época do ano desde então”
“Quer saber de uma coisa? Que se foda isso tudo, vou embora e vou levar minha família junto. Cidade de malucos”. “É tarde demais, você já é um de nós”, novamente a Sra. Warrelly surgiu atrás de mim com seus dentes abertos e ameaçadores. Senti meus braços imobilizados pelo senhor que estava ao meu lado da mesa. Ele me colocou sentado em uma cadeira e toda a cidade estava em volta de mim repetindo coisas como “Ele vai voltar”, “ Você será o próximo”, “Não há lugar seguro”. Tentei alcançar meu celular mas estava sem sinal.
O Sr. Warrelly parou em minha frente, mais sombrio do que nunca e disse: “Você irá colaborar e não deve contar nada a sua esposa. Estaremos o observando todo o tempo. Você não irá fugir e não vai pedir socorro. Apenas montar sua decoração de acordo com nossos planos e recebê-lo em sua casa. Estaremos de prontidão para pegar o Pai Noel ou para eliminar sua família de vez.”
Eles me soltaram e eu saí correndo. Em menos de dez minutos eu estava na porta da minha casa, ofegante, tentando abrir a porta. Ana ouvindo o barulho veio abrir a porta pra mim. Ela de camisola e ainda meio dormindo “Você bebeu de novo?”, Mandei ela entrar com urgência e tranquei a porta. Fui correndo para o quarto do pequeno Hugo e o abracei. A Ana assustada perguntando o que tinha acontecido. “Eles são loucos, a cidade inteira. Precisamos sair daqui. Eles querem matar o Papai Noel e estão ameaçando nossa família pra isso”. Ela me olhava atônita, como se querendo rir mas assustada com meu desespero. “Está tarde, vamos dormir, amanhã a gente conversa sobre isso”, ela disse e foi deitar.


Parte 3


Passei a noite com meu filho no colo, sentado no chão do quarto e tentando me acalmar. Faltava uma semana para o Natal, ainda teria tempo para eu fugir dessa loucura. Ouvi a campainha, assustei e me peguei no meio de um cochilo. Fui olhar que horas eram e percebi que estava sem meu celular. Provavelmente o deixei cair durante a fuga. Coloquei o Hugo no berço e fui ver quem estava na porta, rezando para que a noite anterior tivesse sido apenas um sonho.
O casal Warrelly esperava sorridente que eu abrisse a porta. Como Ana ainda estava dormindo controlei meu escâdalo. “Saiam da minha casa agora, seus loucos! Vocês não são bem vindos. Vamos no mudar o quanto antes dessa cidade maluca!”. “Isso é forma de receber os vizinhos, Eugene?”, Ana disse descendo as escadas de nossa casa. “Entre Arthur e Marta, vou preparar um café”. Marta com aquele sorriso forçado de sempre: “Ana, me ensine esse truque para estar bela assim a esta hora da manhã! Viemos conversar com seu marido sobre as decorações de Natal. Aqui em Lord Duph nós levamos essa época do ano muito a sério!”. Marta foi com Ana para cozinha enquanto o Sr. Warrelly me puxou de lado para minha sala.
“Escute, moleque. Sua família já corre riscos. Estando aqui ou não. Você e seu filho é nossa chance de nos livrarmos de vez dessa aberração que nos assombra todo ano. Temos o controle da cidade. Você não vai conseguir sair ou pedir ajuda, então peço encarecidamente que nos apóie por bem”. Ele calmamente alcançou o telefone da sala e me entregou. A linha estava muda. Meu olho encheu de lágrimas. Eu vi o delegado da cidade, o responsável pela rodoviária, pelos telefones. Todos estavam naquela festa da insanidade a qual fiz parte ontem.
Calado, fui até a cozinha onde minha esposa preparava um café e conversava animadamente com a Sra. Warrelly. “Foi uma festa e tanto ontem, hein? Uma pena eu ter que ficar cuidando do Huguinho”, no que a Sra. Warrelly concordou. O Sr. Warrelly as interrompeu sorridente como sempre: “Vamos, Marta. Precisamos passar nas outras casas ainda. Eugene, deixei em sua mesa o que você deve fazer. Contaremos com sua compreensão de seguir tudo como combinado ontem. O grande dia está chegando! Tenham um bom dia!”
Levei os dois até a porta e contei a Ana tudo o que tinha acontecido. Ela riu. “Bem que a Marta falou que você tinha exagerado um pouco no vinho ontem. Você me assustou quando chegou em casa. O que de mal tem em eles opinarem um pouco sobre nossa decoração de Natal? E essa história toda do Papai Noel… me poupe das suas gracinhas. Vai ser um Natal lindo e toda a vizinhança vai estar unida e presente. Já é mais do que tivemos todos esses anos.”
Sem saber como convencê-la de uma história tão absurda, fui me arrumar para trabalhar. No caminho, estranhamente, todos me cumprimentavam. “Bom dia, Sr. Phillips”, bom dia. Passei a manhã inteira refletindo e às vezes, tudo o que eu precisava realmente era montar a decoração do jeito que eles queriam e quando passasse o Natal essa loucura toda iria embora.
Aproveitei também para pesquisar nos arquivos do jornal o que afinal tinha acontecido com a família Warrelly no Natal de vinte e um anos atrás. “Criança é encontrada morta na Noite de Natal” dizia a manchete. Como uma foto grande do Sr. e Sra. Warrelly desconsolados na capa, o casal contava na matéria sobre uma entidade que tinha invadido a casa durante a noite e assassinado a criança.
Nas edições seguintes, pouco se adicionou. A polícia encerrou o caso sem solução um ano depois, às vésperas do Natal. Não havia provas do que eles contavam. A criança não apresentava escoriações nem sinais aparentes que denunciavam a causa de sua morte. Na edição do dia seguinte, uma notícia sobre o 1º Jantar de Natal da Família Warrelly, em homenagem aos pais de Arthur e em memória da última noite feliz que tiveram antes da morte do jovem Elliot Warrelly. Uma grande reunião que juntou a cidade inteira na mansão Warrelly. “Você anda curioso demais, Eugene. Não estou gostando disso”, meu supervisor disse. “Volte ao seu trabalho”.
Saindo do trabalho pensei em ir a delegacia de polícia, mas a imagem do delegado na noite anterior se juntando ao coro da insanidade me fez recuar e voltar para casa. Ana veio me avisar que o telefone estava fora do ar mas que já tinha conversado com uma vizinha que trabalha na estação e que ela disse que em breve resolveria, culpando a neve pela confusão. Aproveitei o momento para contar a ela com calma tudo o que tinha acontecido e o que tinha descoberto no jornal aquela manhâ.
“Você está dizendo que o filho deles amanheceu morto, eles culpam o Papai Noel e desde então todo ano eles fazem uma espécia de caça pra aprisionar ele?”, sim. Era basicamente isso. “E que eles me ameaçaram e ameaçaram nosso filho para que você entre no joguinho deles?”, exatamente. “Então vamos sair daqui imediatamente”. “Não tem como. Não temos carro e não conseguimos pedir ajuda. A cidade inteira está sob o controle deles só nos resta jogar o jogo.”
Eu e Ana pegamos os planos deixados pelo Sr. Warrelly e começamos a montar nossa casa de acordo com o que nos foi pedido. Algumas luzes estrategicamente colocadas, uma árvore maior. Tudo o que precisávamos um vizinho prontamente nos oferecia. Em dois dias a casa estava de acordo com o que eles pediram.
“Até que deu um pouco de vida a casa, não?” Ana disse enquanto Hugo brincava com as luzinas na árvore de Natal. “Só nos resta esperar o Natal passar agora para podermos sair dessa cidade e nunca mais voltar”.
No dia seguinte, a Sra. Warrelly nos trouxe uma torta de maçã como agradecimento a nossa colaboração para fazer o Natal de Lord Duph especial. Eu preferi não comer mas a Ana e o pequeno Hugo comeram por mim.


Parte 4


Os dias que antecederam o Natal foram mais tranquilos que esperávamos. Com a ameaça a nossa família um pouco esquecida e agora com nossos vizinhos nos tratando super bem, vivemos dias felizes eu, Ana e Hugo. Mesmo sem acreditar no Natal Cristão, entramos no clima e até pensamos em trocar presentes entre a gente. Comprei um par de brincos pra Ana e um mordedor para o Hugo e até ganhei desconto da dona da vendinha.
A véspera de Natal acordou silenciosa. A neve forte deixou todos em casa. Meu coração batia forte em um misto de nervosismo e ansiedade para o que afinal iria acontecer durante a noite. Ana continuava tranquila, incrédula de tudo o que aconteceu no início da semana e achando que tudo não passava de uma grande conspiração de minha cabeça visto a tranquilidade com que todos estavam ultimamente.
O dia caminhava para uma feliz decepção ante sua calmaria quando ouvi batidas fortes na porta. Fui atender e era o Sr. Warrelly enfrentando vento e neve fortes. Deixe-o entrar. “Bom dia, Sr. Phillips.”, disse sorrindo. “Só vim garantir que tudo está pronto para hoje a noite”. A decoração estava como foi pedida, a árvore também. Perto da meia-noite deveríamos colocar biscoitos e um copo de leite próximo a árvore, ir para o quarto e não sair em hipótese alguma. Eu e Ana tínhamos combinado de que íamos apenas fazer o que foi pedido e dormir para não criar mais confusão na vizinhança. Nos despedimos do Sr. Warrelly e o acompanhamos até a porta.
Nos mudaríamos assim que essa loucura passasse. Provavelmente para a cidade natal da Ana. Independente do que acontecesse durante a noite. A pequena cidade não era bem o que a gente esperava, mas foi um erro menor que logo seria superado. Mantendo nossas cabeças longe das possibilidades daquela noite, mal vimos o dia passar. Ana adorou o brinco e me deu um livro de um escritor que eu adorava. Hugo adorou o mordedor, pelo menos é o que aparentava enquanto mordia o objeto.
A noite chegou e meu coração batia forte. Tentei não aparentar meu nervosismo enquanto colocava Ana e o Hugo para dormir. O terror que me passaram naquela reunião ainda não tinha sido superado, mas nada indicava que de fato algo aconteceria aquela noite. Com a ajuda de uma taça de vinho, Ana logo dormiu tendo o bebê em seu colo. Ajeitei os dois na cama e fiquei a espreita.
O relógio apontava pouco para a meia noite e eu não via movimentação em nenhuma das casas da vizinhança. Alguma coisa ia acontecer. Alguma coisa tinha que acontecer pra justificar todo o terror que me foi feito. Um minuto para meia noite.
As luzes da decoração lá fora pararam de piscar. Estavam totalmente acesas. O mesmo acontecia nas casas vizinhas. Deitei atrás da Ana tentando proteger os dois do que quer que fosse. Deixei meu peito um pouco afastado para que o batimento do meu coração não os acordassem. As luzes se sincronizaram na rua. Elas acendiam e apagavam juntas, alterando clarão e escuridão no bairro. Dentro das casas nenhuma luz acesa.
Tentava observar pelas janelas da casa o que meus vizinhos estava fazendo. Nenhuma sombra, nenhum movimento. O pânico começou a tomar conta de mim. Precisava proteger minha família do Papai Noel. Soava ridículo até no pensamento. Fechei meus olhos pra tentar dormir. Fiquei tentando lembrar de como eram os Natais da minha infância.
Lembrei de impedir meu pai, bêbado de atacar meus irmãos. Lembrei de ganhar o carrinho que tanto queria para depois ser tomado de mim por eu não ser um bom menino. Tudo era uma grande lição na cabeça dos meus pais. Ano após ano o Natal se superava em traumas. Quando tive a oportunidade de sair de casa prometi que não iria mais dar importância para essa data.
Cidade maldita. Encheu minha cabeça de medos e meu coração de preocupações. Medo de algo que, racionalmente, não existia. Sentimento profundo de proteção que não me deixava dormir e expor minha esposa e meu filho a algo.
Ouvi uns gritos na casa vizinha. Olhei na janela e pensei ter visto um vulto vermelho passando rápido. Meus olhos provavelmente me engavam. Minha cabeça estava imaginando coisas. Trouxe Ana e o Hugo para perto, como se meus braços fossem impedir qualquer coisa de acontecer. Ouvi mais gritos nas casas vizinhas. As luzes de Natal pararam de piscar. A rua se resumia a escuridão agora. O vento batia forte na janela fechada. Um pequeno uivo invadia uma fresta da parede. Repetia para mim que era apenas minha imaginação. Mais gritos. Comecei a chorar, sem entender direito o porquê. Não queria perder minha família. Não queria abrir mão de tudo que construí. Fechei a cortina. Os dois dormiam como anjos.
Ouvi um barulho na cozinha. Provavelmente o vento, mas eu tinha que checar. Tentei buscar algo com que eu pudesse me proteger em vão. Desci as escadas com as pernas tremendo, deixando o medo tomar conta de mim. Passava mentalmente todas as ordens dadas pelo Sr. Warrelly para entender o que tinha acontecido. O pouco de luz da lua refletida na neve lá fora iluminava meus passos. Achei um pedaço de madeira e carreguei-o em posição ofensiva, por mais que eu tinha certeza de que eu teria pouco a fazer caso precisasse.
A casa estava sem energia, por mais que a sala continuasse iluminada pela decoração de Natal. A cozinha estava vazia. Peguei uma das facas de carne, mais para sensação de segurança do que qualquer outra coisa. Uma batida forte na porta. Meu coração parou por meio segundo. “Eugene, abra, por favor!”, era a voz da Sra. Warrelly, soando bem desesperada. Abri a porta e a deixei entrar. “O que você fez, Eugene? O que você fez?”, sem saber como reagir, olhava pro lado tentando achar o que deu errado. “A oferenda, Eugene. Onde está a oferenda?”, ela gritava.
Os biscoitos e o leite. Na distração do dia, esquecemos de colocar os malditos biscoitos e leite no pé da árvore. As luzes que vinham da árvore também apagaram. Ouvi um grito no andar de cima. No que provavelmente foi o movimento mais rápido da minha vida, abri a porta do quarto onde Ana e Hugo dormiam. Meu coração pulsava em minha garganta. Eles estavam lá, seguros e calmos como estavam antes. Fechei a porta e tentei me acalmar para entender o que estava acontecendo.
“Arthur, não!”, a voz da Sra. Warrelly veio da sala. Desci correndo e me deparei com o Sr. Warrelly em uma imensa capa vermelha, um cheiro forte de gasolina e um isqueiro na mão. “Eles não entendem, Marta. Eles zombam da nossa dor. Eles precisam sentir o que a gente sentiu ou aprender a respeitar quem somos”. Com a tora de madeira em uma mão e pronto para sacar a faca com a outra eu observava a Sra. Warrelly em prantos tentando impedir seu marido de cometer uma loucura.
“Sr. Warrelly, o que você está fazendo? Se acalme!”, tentei em vão gritar. “Custava ter colocado a oferenda, Eugene? Vocês são bons demais para se unir a nossas tradições? A cidade grande não te ensinou a se enturmar? Você vai se juntar a nós ou nos ajudar a reforçar a lenda. Você escolhe”. “Eugene o que está acontecendo?”, Ana estava no topo da escada com o pequeno Hugo nos braços. “Volta pro quarto, Ana! Por favor! O Sr. Warrelly está louco!”
“Venha ver o deboche de seu marido, Ana. Junte-se a nós e pague o preço de rir de nossas tradições”. Ele finalmente soltou o isqueiro no chão e o fogo se espalhou rapidamente por todo o primeiro andar. O casal Warrelly correu em direção a porta, mas a grande capa vermelha estava em chamas agora.
Peguei o pequeno Hugo no colo, tentando cobrir sua boca com minha roupa, corri para o lado de fora. A Sra. Warrelly me derrubou, por sorte consegui proteger o Hugo. O Sr. Warrelly ainda tentava se livrar de sua capa em chamas quando Ana acertou sua cabeça com o ferro de passar roupas. Enquanto a Sra Warrelly socorria seu marido, eu, Ana e Hugo fugíamos da casa e víamos as chamas se espalhando. Gritávamos por socorro mas ninguém da região parecia nos ouvir.
Coloquei o Hugo perto do meu peito e tentei ao máximo protegê-lo do frio. Ana continuava gritando e batendo nas portas dos vizinhos em busca de alguém para nos acolher e nos explicar o que tinha acontecido. Em 40 minutos de caminhada, conseguimos chegar a estrada e um viajante nos acolheu. Contamos nossa história para ele, que não nos levou muito a sério mas “Ninguém deveria passar o Natal sozinho”.
Ele nos deixou na rodoviária da cidade seguinte, onde conseguimos ligar para os pais da Ana que vieram nos buscar. Tentamos em vão denunciar o casal Warrelly nas polícias locais, mas todos diziam que era melhor não mexer com as pessoas de Lord Duph.
Nos dias seguintes, quando mandamos uma empresa buscar o que quer que tenha restado de nossa casa, ficamos sabendo que o Sr. Warrelly foi consagrado como herói da cidade por sua tentativa, em vão, de salvar a família Phillips. Estaremos sempre na memória daqueles cidadãos de bem, apesar do pouco tempo que vivemos lá. Velas foram acesas em nossa porta e dizem que teremos um memorial na praça onde nosso nome estará com o de outras vítimas.
Nunca saberei o que de fato aconteceu há vinte e um anos atrás que levou a sanidade do Sr. Warrelly. Sua influência dentro da cidade, seja por medo ou por respeito, impede que um dia descubram realmente. Sei que o Eugene que se mudou praquela cidade há menos de um mês, não existe mais. Ana voltou a ter surtos e o Hugo não dorme tranquilamente uma noite sequer. Os calmantes não fazem mais efeito. A família da Ana acha que estamos fugindo de algo e que inventamos toda a história. Mais uma vez.
Eu mesmo não tenho muita certeza sobre o que aconteceu. Conto o que consigo lembrar da forma que acho que aconteceu. Meu psicólogo diz que muitas lembranças minhas são projeções de frustrações passadas. Procurei mais informações sobre a cidade e não encontrei nada. Lord Duph não está nos mapas. Seu nome não está nos registros. Não sei se quero mais respostas também.


O Natal ganhou outro significado pra mim, algo que eu não quero mais lembrar ou comemorar, assim como foi na minha infância. Me esforçarei ao máximo para que essa data nunca mais se repita.

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