quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

A árvore.

Desde que ela se mudou da cidade que morava, era a primeira vez que não ia conseguir passar o Natal por lá. O emprego estava uma bagunça, ela não andava bem, tinha faltado uns dias onde simplesmente não conseguia se levantar da cama e, foi informada um pouco em cima da hora de que ia precisar trabalhar na véspera de Natal. Essa época sempre foi muito delicada para ela. Mesmo antes de se mudar, era um momento muito emotivo, quase uma trégua de sua família que vivia brigando e um esforço conjunto para manter uma imagem de união ao menos para as crianças mais novas. Não tinham muito dinheiro, e a cidadezinha não oferecia grandes opções de presente, mas sempre faziam questão de comprar uma lembrancinha ou outro para todos. As crianças ganhavam os melhores presentes, os jovens ganhavam livros e cadernos e os adultos dividiam uma garrafa de vinho e se lembravam de histórias antigas. O Natal era a trégua das brigas. Quando ela ficou adulta, a realidade começou a bater pesado. Primeiro veio a transição dos presentes, depois a entender a dinâmica da própria família. Muito mais voltada na hipocrisia e no respeito à matriarca da família do que realmente um momento de paz. Mas ainda assim, foi com o que ela foi criada e se ver tirada dessa tradição familiar foi dolorido e inesperado. Foi na confusão das últimas semanas que ela levou sem querer para casa um enfeite de Natal que o RH da empresa tinha colocado próximo à sua mesa. Chegou em casa e se deparou com aquela estrela dourada jogada na mesa. Sem pensar muito, colocou pendurada no fecho da janela e ficou olhando a luz de fora refletindo no papel dourado. No outro dia, saindo do restaurante onde almoçava todos os dias, entrou em um mercadinho que sempre parava para comprar um chocolate. Já no caixa, viu ao lado uma caixinha amassada com luzes quebradas de Natal. Observar aquela caixa foi como se ver no espelho, um objeto abandonado e despido de espírito natalino. Perguntou para o atendente quanto custava que, quase como um pequeno ato rebelde contra o capitalismo, deu de ombros e colocou a caixa junto na sacola do chocolate. Ela passou a tarde toda pensando nisso. Chegou em casa, jogou sua mochila no sofá e foi direto para a janela instalar as luzes meio falhas. Organizou-as no formato de uma árvore e realocou a estrela dourada no topo. A manhã seguinte no trabalho foi agitada: procurando referências no Pinterest, ela achou uma neozelandesa que usou pequenas fotos para decorar a própria árvore em vez de bolinhas coloridas. Aproveitando a ausência de sua gerente, ela escolheu fotos suas, dos seus antigos amigos, do seu cachorrinho que ainda estava na casa de seus pais, dos personagens de um filme que ela gostava, e imprimiu pequenas versões que foram mais tarde cuidadosamente coladas com durex em sua janela, onde uma árvore improvisada brilhava. Satisfeita com sua obra de arte, ela encarou por olhas tentando julgar o que faltava, enquanto tocava uma playlist de Natal em seu Spotify. Presentes! Era isso que faltava. Mas ela não tinha para quem dar esses presentes, muito menos dinheiro para presentear qualquer um. Os poucos amigos que ela mantinha na cidade não pareciam próximos o suficiente para ser presenteados, mas tinha alguém que ela conhecia muito e sem dúvida ia amar tudo que ela escolhesse: ela mesma! No sábado seguinte, ela acordou cedo, separou o dinheiro que ela usaria nas passagens de ônibus que não seriam mais usadas e foi para o shopping na intenção de comprar o máximo de coisas possíveis. Comprou um livro que queria ler há tempos, comprou pulseiras coloridas, comprou uma caneca comemorativa de Natal e, por fim, comprou o vinho com a garrafa mais bonita até 30 reais que ela achou. Tudo devidamente embrulhado e com uma etiquetinha "de:/para:". Os próximos dias no trabalho passaram voando, ela fazia sua função da maneira mais eficiente possível para usar o resto do tempo para planejar sua festa de Natal. E foi assim que sua casa ganhou plantas novas para fazerem companhia, um Papai Noel de pelúcia pendurado na árvore, uma assadeira nova e um pernil ocupando 80% da sua geladeira. Dia 24 de dezembro, 18h00, ela saiu correndo do trabalho para casa. Colocou o forno para esquentar e foi tomar banho. Se arrumou toda, cada detalhe do vestido à maquiagem. Preparou a mesa para a ceia, iluminadas apenas com velinhas vermelhas e a luz da árvore improvisada na janela. Abriu seu vinho e serviu na sua caneca nova. Tirou o pernil do forno, percebendo que ainda estava cru. Sem hesitar, serviu-se do resto de comida de outro dia na geladeira, colocou no microondas e sentou em seu sofá com a taça de vinho na mão, observando sua obra de arte na janela. Aumentou o volume da sua playlist e não desejou estar em nenhum outro lugar do mundo.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

O presente.

Ele tinha comprado um presente mas há anos não acertava. Lembrava que antigamente era o mestre nos presentes criativos e surpreendentes, depois de uma série de erros e menosprezos, presentear virou um bloqueio criativo. Assim, cada ida ao shopping ou um passeio nas lojas virtuais próximo a datas comemorativas, virava um pesadelo e uma crise de ansiedade. Nessa indecisão e insegurança, muitas vezes quando achava algo já era tarde demais, não seria entregue a tempo ou custava muito mais do que o orçamento permitia. Mas desse vez ele iria acertar, sem dúvida. Viu um colar com uma pedra roxa muito viva, parecido com outros colares que ela já usava e da mesma cor de muitos dos seus vestidos. Aproveitou a promoção de Natal e comprou na hora. Colocou no bolso da frente da calça para não perder e checava de tempos em tempos se o volume continuava ali. A viagem no metrô rumo a casa dela durava mais do que nunca, e o vagão lotado começava a esquentar de calor. A cada esbarrão de um trabalhador, ele checava novamente o embrulho no bolso. Tudo continuava na sua tranquilidade. Ele desceu uma estação antes de onde costumava descer, disposto a comprar o sorvete preferido dela numa padaria que ficava no caminho, iria andar alguns quarteirões a mais mas com certeza seria recompensado com a reação que ela teria ao receber tudo. Andando em direção a padaria, ele pensou o quanto ele se sentia bem com aquilo tudo, o quanto fazer alguém feliz o deixava feliz, mesmo que nos pequenos gestos. O dia começava a escurecer, o que o fez lembrar que não tinha avisado que estava indo. Tirou o celular do bolso e começou a digitar uma mensagem para avisar sua localização. Entrou na padaria, conferiu o horário e sentou, esperando a resposta de sua última mensagem. Com um emoji de coração e um gif animado, ela respondeu que estava a sua espera. Na padaria mesmo cogitou se levava um vinho para acompanhá-los durante a noite mas, em plena terça-feira onde ela trabalharia cedo no dia seguinte, chegou a conclusão de que o sorvete seria suficiente. Pegou o sorvete mais atrás na geladeira, uma técnica que aprendeu com o amigo que dizia que era lá que guardavam os sorvetes mais novos e mais gelados, e foi até o caixa pagar. Como tinha uns trocados, resolveu aproveitar o espírito de Natal para doar umas moedinhas pra caixinha de funcionários e continuou seu caminho rumo a casa dela. Com o celular na mão, colocou uma música para embalar seu percurso e andou como se num clipe musical. Foi em frente ao prédio de 15 andares onde ela morava desde os 16 que ele apertou o 802 para anunciar sua chegada. O portão abriu sem falar nada e ele bateu a mão no bolso uma última vez para conferir o presente que não estava mais lá.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Sono dos justos.

Transito nesses corredores como quem já conhece cada canto. Sei qual é meu papel e já o desempenho com naturalidade. Muito mudou desde que vim aqui cheio de dúvidas e fora de lugar. Hoje, me despedindo, sei que posso voltar quando quiser. Que não estou na casa dos outros, que aqui também é parte do que é meu lar. Sei quando mediar, quando ouvir, quando fazer. Meus horários e minhas funções estão claras na minha cabeça. Já sou livre para fazê-las do meu jeito. O nível máximo de confiança é quando lhe permitem fazer sua função como você julgar melhor e é onde eu me encontro. Preparo uma cortina improvisada e busco um ventilador auxiliar. Estou pronto para a enfrentar a última barreira: o sono tranquilo.

domingo, 15 de dezembro de 2019

Represa.

Aprendi a não julgar as emoções por suas intensidades, a dar valor para os pequenos momentos felizes assim como a sofrer a tristeza quando necessário. Aprendi também o limite do meu envolvimento em diminuir o sofrimento do outro, entender até onde eu poderia ir sem prejuízo próprio do que me mantém em pé. Vivo um momento onde não tenho a opção de ser ameno. É tudo muito intenso, e cada escolha é uma vitória de um lado e uma derrota do outro. Por mais que eu aceite e conviva com esse sistema auto-estabelecido, não estou imune a suas consequências. Continuo sofrendo o impacto das tristezas que causo em mim e nos outros. O sofrimento das notícias reais, o sofrimento dos personagens fictícios, o sofrimento de antes, de agora e de depois. Todos são pequenas facas que torcem dentro de mim e que, de certa forma eu aprendi a lidar, sofrer, chorar e continuar. Sei que não tento não passar isso para os outros, principalmente aqueles que não buscam mais do que a superfície e a frivolidade. É sempre importante escolher com quem você divide seu sofrimento e a forma como fazer isso para não sobrecarregar o outro. A gente sofre pelas nossas demandas e carências, por mais que as ações do outro possam engatilhar sofrimentos, mas nosso processo é sempre nosso. Então, às vezes, acumulam coisas demais e derramamos. Eu não posso impedir isso, não posso guardar para mim e explodir sozinho. Emanar felicidade é um esforço muito grande, e uma escolha consciente e difícil. Mas é importante saber canalizar a tristeza sem represá-la. Ela existe, e para quem se importa, é inevitável. Tirar ela do peito é uma das melhores formas de lidar com ela. Dividir e entender. Os próximos dias serão cada vez mais assim, a calmaria está longe demais. Já peço desculpas pra quem eu molhar no processo.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Vida.

O primeiro passo é um grande passo
Assim como as primeiras palavras
A pureza de quem corre pra um abraço
O carinho sincero de onde não se esperava

Pouco depois vem as primeiras quedas
Os primeiros choros não remediados
O primeiro trauma que não se supera
A primeira fagulha que marca o passado

Então você tenta descobrir quem é
Não encontra-se em lugar nenhum
Você não sabe direito o que quer
E não acha mais nada em comum

A vida então traz responsabilidades
As contas, empregos e amores
Outras coisas que vem com a idade
Outras formas de curar suas dores

Mas tem uma hora tudo passa
Porque o tempo passa sem lhe perguntar
Você olha pra trás e acha graça
Até chegar sua hora de descansar

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Tempo.

Nem sempre o laço nasce forte
E muitas vezes ele afrouxa com o tempo
Para poucos que guardam sorte
Os anos reforçam esse sentimento

Momentos passam batido
Outros duram como cimento
Cortes curam como se não tivessem doído
Cortinas descansam como se não houvesse vento

A base, mesmo que fraca, aguenta,
Se a estrutura não pesar pro lado
Com boas paredes a casa sustenta
Todo o peso que cair no telhado

E o tempo, esse passa voando
Como quem pouco se importa
Daqueles que vão pra janela quando
Não conseguiu entrar pela porta

Hoje já coloco meu pé no sofá
E levo o lixo pra fora
Como quem sempre esteve lá
E não tem hora pra ir embora

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Conto.

Quando se conta uma boa história
As pessoas sempre querem mais
Elas esperam pelas derrotas e vitórias
Anseiam pela guerra e pela paz

E cada capítulo que passa,
Que traz mais daquele mundo,
Traz pro real muito mais graça
Deixa seu sentimento mais profundo

Então não tenha medo de continuar
Porque o final pode ser só um ponto
Que alguém colocou sem querer

Se uma vírgula entrar no lugar
Abre espaço para um novo conto
Seu leitor vai agradecer

Chegada.

Vem, beija a vó
Pede bença que chegou
Pergunta como foi
e porque que demorou
Bebe água
Lava a mão
Já comeu?
Diz que não
E as coisas
como estão?
O que que conta?
E a escola?
As namoradas?
E o clima, como tá
Tem chovido
Sem parar?
Continua,
como sempre,
Tempo seco
Clima quente
Deita um pouco
Viagem longa
Toma banho
Trouca de roupa
Vai ter língua
Pro almoço
Frango cozido
Rói o osso
Lava o prato
Enxuga e guarda
A sobremesa
Na bancada
À tarde bate
Um sono leve
O sol esquenta
A minha pele
O dia cai
Com meus olhos
Acordo logo
E reaprumo
Vejo a novela
Palavras cruzadas
Conversas cruzadas
Janta, lava, deita
Bom dia a todos
Lê o jornal
Lava o rosto
Pão de doce ou sal
Uma fatia de queijo
Outra fatia
Só mais uma
E mais uma fatia
Volta pra sala
Escolhe um livro
Tenta não dormir
Desce pro mercado
Revê amigos
Lojas, produtos
Vai ao shopping
Compra presentes
Volta pro almoço
Pra não perder carona
Todos comem
Falam dos outros
Arrumam cozinha
Deitam de novo
Pra mais tarde
Comer, conversar
Em frente a tv
Se arrumar 
E dormir novamente
Siga assim
Até chegar o dia

De voltar

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Casa.

Vamos construir uma casa
Que caiba todos nossos planos
Caiba os filhos e seus filhos
Dê um teto e dure anos

Que os discos e os livros
Não se cansem de tocar
Onde todos se reúnam
Sempre à mesa de jantar

Que as diferenças se resolvam
Em palavras, não em punhos
Que o perdão seja o rumo
E o coração seja mais puro

Que os muros tenham portas
E que as deixem abertas
Que ventilem as janelas
Que importa se lá chove
Molha o chão mas traz a calma
Que descansa pós-domingo
Recolhe a roupa e lava a alma

E como pedra, ela dura
Mira longe, acerta em cheio
Cada muro e sua textura
E o amor em seu recheio

domingo, 10 de novembro de 2019

Fantasia.

Me disfarço de adulto
Como quem se veste de palhaço
Faço os movimentos certos
Com os sorrisos e os passos
Ser adulto é nada mais
Que fingir até colar
Até ser tarde demais
E não dar mais pra voltar
Por isso brincar é essencial
Ver brilho onde não tem
Entrar em nave espacial
Conversar com o além
Ver a vida em aventuras
Sob cachoeiras e outras matas
Fingir ter medo de altura
Enquanto ajeita sua gravata

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Carne e Osso*.

Meu passado bate em ondas
Destruindo muitas rochas
Todo leão vira rato
Se perde muitas apostas

Também vi seu sofrimento
Apoiado em sua fé
Se não sou seu inimigo
Não sei quem é

Pois afinal, lá no fundo
Somos só de carne e osso
Somos imagens no espelho
Cada um para um lado oposto
Dentro de si, fora de nós e sem razão

Que deixa uma cicatriz
Me castiga e me machuca
Me ensina a ser humilde
E não deixa que eu retruca

E quando eu paro pra pensar
Meu orgulho é meu dilema
Pois preciso aceitar
que eu sou parte do problema

Pois afinal, lá no fundo
Somos só de carne e osso
Somos imagens no espelho
Cada um para um lado oposto
Dentro de si, fora de nós e sem razão

A gente volta onde parou
Protegendo a visão
Dos cacos de uma nova vida
Espalhados pelo chão

Viver pra trás é muito errado
Num mundo só de pecados
Todos merecem ser perdoados
É nossa chance de mudar

Pois afinal, lá no fundo
Somos só de carne e osso
Somos imagens no espelho
Cada um para um lado oposto
Dentro de si, fora de nós e sem razão

*Tradução livre da música "Guts n'Teeth", de Old Man Markley.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Solidão.

Me peguei pensando em tudo que eu já fiz para não estar sozinho. Aprendi a conversar e a tratar as pessoas bem. Virei líder quando precisei e soldado quando foi pedido. Aprendi a tomar decisões por todos e a seguir quando necessário. Aprendi a ser divertido, interessante, com muitas curiosidades e histórias sobre coisas que nem mesmo eu sabia o que são. Tentei ser bonito, agradavelmente simpático, mais ou menos bem vestido. Sorrir é uma grande chave, pras pessoas entenderem que você está feliz de estar ali, ou de falar com elas. E estive. Até que não estive mais. Teve aquele momento que estar cercado de pessoas me fazia me sentir ainda mais sozinho. Sem me ver nelas, me comparar, me inspirar. Olhava em volta e me sentia sufocado e isolado ao mesmo tempo, e isso foi difícil demais. E aí voltei praqueles que me traziam conforto, até entender que nem sempre quem está ao seu lado te faz companhia. E fui obrigado a estar sozinho de novo e foi desesperador. Preencher meu tempo e a cabeça sem o outro, fazer minhas coisas, cumprir meus objetivos sozinho. Tudo parecia longe demais e difícil demais. Foi na terapia que aprendi a observar essas coisas que me davam medo em estar sozinho, e em também observar o que eu fazia pra não lidar com isso. Mas só entendendo o porquê de me incomodar que eu realmente me vi livre. Primeiro, me obriguei a andar sem rumo, só comigo mesmo. Depois entendi minha individualidade mesmo nos grupos que eu participava, e entendi que estava tudo bem em às vezes dar um passo para o lado para poder viver as coisas de maneira mais plena. E de passo em passo, percebi que posso ir para longe, o mais longe possível inclusive. Mas ainda tenho medo, de quando chegar lá eu perceber que não sou tão forte, que a solidão ainda pode me derrubar e não ter nenhuma base para apoiar. Eu conheço minhas armas, sei que posso usá-las, mas bate o receio de novamente eu me perder sobre elas. Desde já eu penso sobre o que fazer quando eu estiver realmente sozinho. E isso vai acontecer muito em breve.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Trinta.

Estou espantado como os 30 anos estão chegando de maneiro confortável pra mim. Lembro que senti bem meus vinte anos, muito mais que os 18, falando sobre a mudança que realmente aconteceu pra mim. Queria achar esse texto. Agora estou aqui há um mês de completar essa terceira dezena de idade e prestes a ter a maior mudança geográfica e social que eu já tive em minha vida. Além de ter um certo orgulho de onde estou, vindo de dois anos de muito crescimento pessoal, me sinto também muito confortável e esperançoso com o que há por vir. Começo, talvez pela primeira vez inclusive, a me identificar com séries e filmes que retratam essa faixa etária a qual me incluo. Os dilemas profissionais e de relacionamento, os dramas existenciais, tudo são coisas que tem aparecido muito no conteúdo que consumo e tem me confortado. Mesmo no reality show japonês que poucas vezes fez muito sentido, já me sinto parte daquilo como se a mudança que cada um busca em participar é a mudança que eu também busco nos próximos meses/anos. Ter trinta anos hoje, um millennial nativo em sua mais pura essência, é muito louco. Não me sinto velho, a palavra adulto ainda me assusta, mas não sou mais o "jovem adulto" que me via antes. Tenho minha carreira, meu dinheiro, minha história. Até por isso pouco me identifico ou me interesso pelas pessoas que acabaram de sair de suas adolescências e tem muita coisa pra descobrir ainda. Me vejo mais nas pessoas em crise profissional, ou felizes e acomodadas em seus relacionamentos (ou falta deles). A terapia caminha pro seu final nesse momento de transição pesado, mas sei que cheguei longe demais, que não sou quem eu era há dois anos atrás quando não vi outra opção a não ser começá-la. Me identifico com os dramas dos meus amigos, e vejo todos nós em movimento, cada um a sua maneira. Completar trinta anos é uma consolidação muito pesada da minha vida. É o momento que as dúvidas são mais existenciais, que a insegurança vem de outras formas, porque as certezas estão ali já fincadas. E é muito louco viver uma mudança tão drástica em um momento tão sólido. Mas também tem aquele sentimento que é o momento perfeito para mudar, porque se não mudar agora, talvez eu esteja aqui pra sempre. Nesse lugar, nessa mentalidade, nesse corpo, com essas pessoas. Então eu vou, nessa mudança de tudo, começar essa nova fase da minha vida que vai me levar não direito pra onde, mas sei que estou preparado.

Ps. lembro de escrever um texto falando sobre como completar vinte anos foram bem mais marcantes pra mim do que os 18. Infelizmente não consegui encontrá-lo.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Baldeação.

No transporte público, eu penso sobre o meu dia. Saio cansado do trabalho nas minhas frustrações cotidianas pra pegar uma hora de avenidas lotadas até minha casa. O choro entalado por um mal entendido esperando só uma brecha para sair, mas seguro para não incomodar e não ser incomodado. Abro meu livro, mas não concentro, leio uma e volto duas páginas em busca de distração. O processo dói, mas doeu chegar até aqui e me prometeram que no final da dor tem conforto. Daí eu continuo, diariamente, sofrendo todas minhas dores no metrô.

Às vezes divago sobre a dor do outro: a mulher que digita rapidamente na tela do celular, enquanto segura as compras com a perna. O moço que chora discretamente enquanto escuta algo em seus fones, com a cabeça recostada no vidro. O homem que, de tão vazia sua expressão, deixa o corpo ser levado pelo movimento em busca de sentir algo finalmente. A criança que se comporta ao lado da mãe na esperança de pararem no caminho para comprar um doce ou algo assim. A senhora que repete silenciosamente trechos da bíblia como se aquilo fosse limpar seus pensamentos impuros e levá-la direto para o céu. O adolescente que sente o peso da responsabilidade não só do próprio futuro mas também o de toda sua família, e não sabe se está preparado para as provas que virão nos próximos dias.

Cada pessoa é um mundo inteiro de sentimentos e histórias, que se cruzam diariamente nas suas rotinas e rotas. Quando cruzamos o olhar, faço um sorriso discreto, não daqueles que querem puxar conversa, mas daqueles que entendem a nossa dor. Peço desculpas quando esbarro em alguém e quando esbarram em mim. Peço licença e por favor, mesmo quando não é necessário. Falo bom dia, boa tarde, boa noite aos trabalhadores que fazem todo o sistema de transporte funcionar. Se alguém puxa assunto, tento estar atento dentro das minhas possibilidades. Quando não posso, peço desculpas e invento um motivo para colocar meu fone.

Não me sinto responsável pela vida dos outros, minha vida já é difícil por si só, mas entendo que estender a mão muitas vezes é fácil e muito significativo para quem está para baixo. Ou continuo fazendo na esperança de que um dia façam comigo, não sei. Só sei que minha dor diminui um pouco quando o outro não dói mais.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Águas.

Debaixo da água eu tinha o silêncio
E a leveza de um mundo sem peso
Quando foi que deixei a água pra trás?
Lembro de ficar sozinho por horas
Até o sol ir embora
E minha mãe me mandar voltar

Estranho como hoje já não consigo
O silêncio incomoda
O despropósito também
Preencho com música
Todo o tempo que tem

Mas debaixo da água, 
Na calma da apneia
De repente me sinto bem
Privado por um momento 
De todas minhas sensações
Sem questões e sem ideias
Apenas eu, cercado pelos lados
Duma paz que não lembrava

Sempre subo para pegar ar
O fundo não é meu lar
Mas quisera eu flutuar tranquilo
Para sempre em alto-mar
Sem o peso das contas
E dos que contam comigo
Sendo levado por ondas
De um oceano sem perigo

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Construção.

Quem sou eu quando eu for embora
Seria ausência ou serei memória
Porque se o que eu fiz e onde estive
Definem minha própria existência
O que eu vou ser quando me faltar presença
Quando o lembrete diário de estar aqui
Não estiver mais
Quando o reforço da minha ação
Não relembrar que estou aqui
Quem eu sou longe de tudo que eu construí?

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Ingratidão.

Seguir em frente significa deixar pra trás
Mas deixar pra trás é tão pesado
Porque soa quase como um abandono, ingratidão
A gente olha pro passado e se orgulha
Vê o caminho que já andou
Vê os tropeços e acertos
Vê o tanto que cresceu
E continua o caminho quase sem pensar
Mas quando o passo é mais longo
Quando o pulo é mais arriscado
Parece que a gravidade puxa mais forte
E o ar fica mais pesado
A gente respira fundo
Mas o peito trava no meio
E olho se enche de lágrima

Não posso mais ficar parado
A curva de crescimento é lenta demais
Mas dói demais olhar o passado
E aceitar que ele ficou para trás

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Semana.

Você ouve os passarinhos lá fora?
Sente o calor do sol?
A brisa leve que não demora
E a textura do lençol
Sente o cheiro do café
Que sobrou na cafeteira
Hoje pode ser um dia bom
mesmo sendo segunda feira

terça-feira, 3 de setembro de 2019

Sonhos intranquilos.

A batida do teclado ecoa na sala vazia
Mente vazia oficina de sonhos
Transporto-me para um resort em tel-aviv
Tela ao vivo transmite meu sono
Corrente invisível me prende à cadeira
Cadeia de processos me trouxeram aqui
Acordo cansado em plena segunda-feira
Consequência de tudo que apostei e perdi
Meus pais dizem que é só trabalhar mais
Meus avós falam que o melhor é após
Meus amigos, perdidos, não falam mais nada
Dividem a dor e os pesadelos de madrugada

A noite me caçam e acordo suado
Uma voz infantil, imatura e mimada
É só um sonho, diz um senhor cansado
Mas se são só sonhos
Sonhar aqui não vale nada

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Tudo bem.

Queria que você me olhasse nos olhos
E me dissesse que vai ficar tudo bem
Que depois de tudo não vou ficar 
Com um gosto amargo na boca
E um choro engasgado na garganta
Que vou ter vivido o que eu precisava viver
Quando eu precisei viver
E que um passo pra fora é importante
Pra quem quer ir mais longe

Me fala de coração que vai ser difícil
Mas que sempre é
E que pouca gente teve o privilégio de viver 
O que a gente viveu

Fala que você também vai ficar bem
Do seu jeito de lidar com as coisas
E que eu não preciso me preocupar
Porque você é assim, parece não precisar
Mesmo estando muito feliz em ter

Mas e eu?
Quem eu vou ser longe de quem eu era
Será se eu consigo ser eu mesmo
Será se o mundo vai me abraçar 
Ou me chutar pra fora

Fala pra mim que vai ficar tudo bem
E se precisar, mente pra mim também
Porque eu não estou preparado para que dê errado
Então que, caso dê, que eu erre com certeza
Mas quando eu perguntar
Fala que vai melhorar
Que as coisas são assim mesmo
Que é um dia de cada vez

Porque vou sentir demais a falta
De você pra me falar que vai ficar tudo bem

sábado, 10 de agosto de 2019

Quem são.

Quem foram vocês
Que não me beijaram boa noite
Não me cobriram no frio
Nem escutaram meu choro
Que não me inspiraram histórias
Não marcaram memória
Nem se fizeram presente
Que não me ensinaram as palavras
Nem a somar ou tirar
Não me mostraram os mapas
Nem deixaram sonhar
Que me cobraram sem dar
Mesmo eu dando tudo que tinha
As metas que nem eram minhas
Eu cumpri sem questionar
Que nem se ligaram
Quando o telefone tocou
E eu saí sem avisar
Voltei tropeçando
Entrei direto no quarto
Pra que não me ouvissem chorar
E hoje questionam
Porque não agradeço
Porque não obedeço
E não abaixo a cabeça
Onde eu aprendi
A responder desse jeito
A me comportar desse jeito
A tratar vocês desse jeito
Eu sei onde eu não aprendi
Onde eu mais buscava
Já que nada que eu sou
Eu me tornei em casa

terça-feira, 6 de agosto de 2019

A pequena sereia.


O sol estava mais quente que o normal, mas ela não ligava. Enterrava os pés na areia só para poder levantá-los e sentir as pedrinhas caindo entre seus dedos. Às vezes o mar subia e enchia de água o buraco que ela estava sentada. De longe seu irmãozinho construía um pequeno castelo de areia. Ela gostava de pensar que aquilo tudo era seu reino, e que todos ali na praia eram seus súditos. Não que existissem para serví-la, mas que sua benevolência e cuidado que mantinha todos em um ambiente seguro. Sua mãe vinha de tempos em tempos reforçar o protetor, e trouxe um coco imenso com dois canudos coloridos. Ela enterrou o coco na sua frente, no limite do canudo, que abaixava para poder tomar mas deixava as mãos livres. Ela também fazia pose, com os braços pra trás e as pernas semiesticadas, como as moças adultas que ela via por ali. Levantava os óculos muito maior que sua cara, e manda piscadinhas e beijinhos para o mar. Quando crescer ela quer ser sereia, pra poder viver no mar e só sair para cantar. Com um cabelo gigante e colorido, ela já imaginava o movimento dele no oceano. Teria uma coleção completa de todas as conchas, com vários tamanhos, cores e texturas. Também seria amiga de todos os animais, que nadariam com ela numa dança ritmada. Algumas vezes ela voltaria à terra pra poder visitar seus pais, ela realmente gostava do bolo de fubá da sua vó. Mas fora isso não gostava de ver como trabalhar cansava sua mãe e como as contas estressava seu pai. Então ela tinha decidido que seria sereia, porque sereia não tem trabalho de adulto. Seu irmão poderia ir com ela se ela quisesse, mas ele teria que se comportar porque ela não iria ficar cuidando dele o tempo todo. Será se as algas e outras plantas aquáticas tinham que ser podadas de vez em quando? Ou elas já nascem do jeito que elas tem para crescer? Ela podia se encarregar de regar as plantas do oceano, ou colocar em vasinhos pra poderem tomar sol. Esse seria o trabalho dela, tinha decidido. Reuniu seus brinquedos cheios de areia, viu a marca do seu bumbum encher de água mais uma vez e foi dar a grande notícia para sua mãe, mas ela estava ocupada demais no telefone.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

O texto.

Era a terceira vez que ele começava a escrever e jogava tudo fora. As palavras não pareciam expressar o que ele sentia, mas urgia a necessidade de escrever. O lápis e o caderno, plataformas obsoletas, só geraram rabiscos e mais lixos, seguidos novamente pela culpa em relação às àrvores, mas a tela branca do computador também não estava fazendo efeito. Decidiu narrar todo seu processo como forma de começar algo. Começou escolhendo sua posição na cama, de forma a não superaquecer o computador e não cansar seus músculos enquanto escrevia. Abriu o primeiro editor de texto que viu e deu a chance das palavras saírem. Depois da primeira vez, já tinha entendido mais ou menos o formato que queria para seu texto, mas apagou tudo e tentou recomeçar do zero. Outras palavras, outros pensamentos para passar a mesma ideia. Por alguns segundos se arrependeu de ter apagado tudo, era melhor ter continuado de onde estava e depois reeditar, mas a segunda vez fluiu melhor. Quando travou em uma forma de acabar o texto, decidiu apagar novamente e recomeçá-lo. Sabia que mesmo sabendo o destino, era o caminho que decidia como as coisas iriam ser. Voltou novamente para a página em branco e escreveu no fluxo de ideias. Relendo o que escreveu, reconheceu os sentimentos que estavam presos em si, escondidos nas pequenas vírgulas e no ritmo inserido. Refletiu se mais alguém perceberia, refletiu também se alguém leria e se compensava realmente publicá-lo. Após quase apagar para começar pela quarta vez, preferiu colocar junto dos outros textos públicos mas estrategicamente escondidos, para que no futuro esse momento seja registrado e para que, alguém um dia, possa se inspirar nele e fazer o seu próprio texto.

Meu melhor amigo Werther.

Terminei de reler Os Sofrimentos do Jovem Werther, um dos livros que mais li na minha adolescência e que tanto fez sentido em momentos de desilusão amorosa. Ler hoje, mais maduros e principalmente com ideias mais claras sobre relações abusivas, me traz um receio muito grande no tipo de reforço que esse livro pode trazer pra adolescentes. Diz a história que o número de suicídios entre jovens na Europa aumentou consideravelmente depois da publicação desse livro, um fenômeno interessante de um momento séculos antes da internet, das redes sociais, do Tumblr e dos desafios da baleia azul.
Mas é difícil demais não se identificar com a história do jovem que vai para o campo em busca de inspiração para uma vida vazia e lá conhece uma pessoa que atende todas suas demandas e sonhos, para depois descobrir que ela está noiva de outro. Vemos o sentimento de Werther crescer a medida que a convivência dos dois aumenta, até chegar no caso extremo dele precisar se afastar por não conseguir estar perto dela sem ter ela como amante. E Charlotte, ou Carlota dependendo da versão do livro que você lê, sempre gostou muito de Werther. Ele era uma pessoa erudita, de conversa fácil, muito carinhoso com ela e com os seus vários irmãos que ela cuidava desde que a mãe morreu. Mas o amor, ou o desejo de se relacionar, não é um campeonato onde se acumula pontos e ganha o direito de vivê-lo, e Albert, seu noivo, também era uma pessoa boa que fazia muito bem para ela e sua família.
Durante o livro, vemos Werther entrando em um labirinto próprio que dificilmente conseguiria sair, principalmente em um momento onde terapia e psicologia mal existia nos livros. Não conseguimos saber quão reais são as características de Charlotte, já que estamos sempre vendo o ponto de vista de Werther em suas cartas para o amigo Wilheim (Guilherme em algumas traduções!!!). Mas mesmo do ponto de vista dele, vemos que Charlotte sempre foi muito respeitosa com seu relacionamento e que Werther se prendia nos pequenos gestos para alimentar seu sentimento. Por diversas vezes, ele se passava horas admirando objetos que ela havia tocado.
Quando adolescente, consegui me ver em muitas das atitudes dele. O que mais me chama a atenção nessa relação é a ideia de injustiça ao não ter sentimentos tão intensos correspondidos. Como que alguém que está tão disposto a fazer tudo que a outra pessoa quer e precisa pode ser descartado com tanta facilidade? Como alguém que é querido, não odiado, não menosprezado, pode ser descartado como interesse romântico? Mesmo em seus últimos momentos, Werther ainda não entendia isso. Ainda buscava em cada momento de afeição, cada demonstração de carinho, como um sinal de posse e entrega de Charlotte para si. O respeito e admiração que nutria por Albert alternavam-se com um ressentimento gigante por ele ter sido o escolhido para estar ao lado dela.
Mesmo com os olhos atuais, onde existe uma certa responsabilidade em alimentar um sentimento alheio não correspondido, Charlotte seria aprovada com louvor. Suas ações eram verdadeiras e bem intencionadas, inclusive em buscar se afastar de Werther quando entendeu necessário. Já Werther usava da sua personalidade e educação para buscar meios de estar na presença dela, criar situações que os aproximavam e, por fim, criar nela a culpa pelo seu fim trágico. Não uma culpa de chantagem, mas um entendimento de que eles só poderiam estar juntos em outro plano e por isso ele estaria lá esperando por ela.
O comportamento de Werther hoje me traz vários alertas e vejo como inconscientemente me tornei meu chará Wilheim. A busca por apoiar, achar soluções, propor saídas e incentivar as artes daqueles que amo e que buscam ajuda felizmente me aproximou mais do receptor das cartas do que seu autor. Entendo a dor do meu amigo Werther, mas não alimento-a e, acima de tudo, não apoio os meios que ele usa para lidar com ela. Mas tudo que posso oferecer são sugestões, conselhos baseados nas minhas experiências e na minha observação do mundo.
Sofro pelos jovens do século XIX e do século XXI que não tiveram pessoas ao seu lado para ajudá-los com seus dilemas e agradeço quem esteve ao meu lado e quem contou comigo. Chorei por diversas vezes lendo o livro e pensando por quantas vezes outras pessoas passaram por aquilo e não conseguiram enxergar os próprios erros e caminhos de volta. A internet traz acesso a redes de apoio mas também ensina e incentiva o mal, assumo aqui, bem mais consciente, meu papel de Wilheim. Que eu possa fazer o que ele não conseguiu.

domingo, 28 de julho de 2019

O menino e o mar.

Corria em sua direção com os punhos fechados
Com a certeza de quem domina a luta
As pernas magras em passos rápidos
A barriga inchada e o sol na nuca
Mas a coragem se transformava em medo
Assim que a onda vinha na direção
Pois o mar que puxa não guarda segredo
Que voltará com ódio a quem o levantou a mão

Pobre menino, correndo sozinho
Chorando salgado, tropeçando na areia
A onda o gira como um moinho
Ralando o joelho e com água na orelha

Mas no instante seguinte o mar recua
E o menino concentra coragem no peito
Fecha-se os punhos, a bermuda flutua
Até que a onda o pega de jeito

Pequeno Quixote, sonha com gigantes
Desafia o mar mas teme a onda
Quando crescer não será como antes
O mar te procura onde quer que se esconda

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Capitão.

Mar calmo não faz bom marinheiro
Então guio o barco para o olho do furacão
Passo confiança para minha tripulação
Enquanto por dentro me tremo inteiro
Mas do outro lado tem nosso destino
A fama e glória que me prometeram
O tesouro de ouro genuíno
As praias que outros homens não conheceram

E eu finjo costume
Como de costume
Como sempre fiz
Assim guio os meus
No desejo de Deus
Contra o que eu quis

A onda levanta a proa
O mar se revolta irritado
Vira o barco como canoa
Testa meu fôlego e nado
Na praia, levanto perdido
Em meio a areia e derrota
Pior é ter sobrevivido
E ver afundar minha frota

De noite, fantasma me assusta
De dia o que me assombra é a fome
Tesouros não valem a luta
De ver morrer os meus homens

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Passarinho.

Observo o passarinho
E ele também me observa
De longe desconfio
De suas asas abertas
O galho no bico
O ninho de pedras
O canto sombrio
Prevê suas metas

Pobre passarinho
Que não sabe meus planos
Do meu sangue frio
Do meu lado humano
O que me faz sentir vivo
E minha mira certa

Rio bobo do pássaro assustado
Pobre passarinho
Com seu peito estufado
Me dá um rasante em que caio deitado
Pobre menino
Mexeu com o pássaro errado

domingo, 30 de junho de 2019

Desculpas.

A medicação já estava fazendo efeito há tanto tempo, que eu não conseguia mais medir o tempo. Meus cochilos duravam horas, dias às vezes, e minha mente transitava entre o quarto do hospital e um completo nada com mais facilidade do que eu gostaria. No começo ainda me traziam comida, depois tive que me contentar com o soro que me davam pra me manter. Não que eu sentisse fome, mas a memória dos sabores e da satisfação ainda era muito recente pra mim. O frio e o calor também se revezavam com facilidade no meu corpo, logo me acostumei a estar sempre suando, pelo menos assim diminuía as vezes que eu precisava ir ao banheiro, sempre um momento mias constrangedor pra mim do que pra enfermeira. Meu corpo, fraco, mal conseguia apertar o botão de auxílio, mas a equipe estava sempre alerta comigo. Qualquer descuido podia agravar demais minha situação.
Os médicos não me falavam, mas muitas vezes eu ouvia eles dizerem sobre meu estado enquanto achavam que eu dormia. Não havia muita esperança porque não havia resposta. Os exames eram inconclusivos e o tratamento não demonstrava grandes resultados. Com meus olhos abertos, a reação era sempre outra. Traziam boas notícias e esperanças. Como se viver meus últimos dias feliz diminuísse um pouco o peso desses meus últimos dias.
"As flores morreram antes de mim", eu disse numa tentativa de quebrar um pouco o gelo mas só consegui fazer minha mãe chorar ainda mais por não conseguir cuidar nem das flores que levou pro meu quarto. Dizem que você se acostuma com a dor, mas estar acordado era insuportável todos os dias. Por isso meus olhos escolhiam se fechar por muitos momentos, na esperança de que se eu não me mexesse, meu corpo se desligaria sozinho.
Sempre gostei muito de viver, e investi anos demais da minha vida nisso pra abrir mão facilmente, mas cada dia que eu acordava era uma decepção. Morrer dormindo era minha escolha desde sempre, nas brincadeiras de criança onde isso não passa de uma ideia tão distante quanto um filme no Espaço Sideral. Hoje era uma realidade e um desejo, meu corpo poderia se desligar a qualquer momento, mas insistia em não. Pros meus pai eu era um milagre, um sentimento egoísta de me manter ao lado deles a qualquer custo, como prova do sucesso deles como pais, mas se o Deus que eles acreditam fosse tão poderoso, ou piedoso ao menos, já teria me poupado desse processo cansativo e doloroso. Ou me explicado melhor o plano tão grandioso que me transformaria meu martírio em uma peça-chave. Mas não, era sempre a enfermeira, ou meus pais. Alguns amigos. E o ritmo cada vez menor, e eu ficando cada vez menos ativo e interativo.
Até que hoje, você veio. Sem dó, mas sem peso nas palavras, me falou sobre como eu poderia ter sido uma pessoa melhor. Falou também sobre como eu te machuquei tantas vezes, machuquei meus pais e as pessoas na minha volta. Assumi cada erro e tentei contextualizar o que eu pensava na época, mostrar um outro lado. "Nunca me considerei uma pessoa ruim, não queria seu mal", disse mas você discordou. Com a delicadeza de sempre, me ensinou muito tarde demais. Porque eu também percebi tarde demais o quanto você me fazia bem. Devaneios infantis de um homem que viveu demais e aprendeu pouco. Aprendizado tardio de coisas que deveriam estar ensinar na escola. Os bons momentos eram eclipsados pelo meu passado e pelo remédio que mais uma vez me derrubava. Pedi desculpas por não conseguir continuar a conversa e pedi desculpas por tudo que eu fiz. Tudo mesmo, cada detalhe. Fechei meus olhos pela última vez, carregando comigo toda a culpa dos meus erros.
Hoje, o mundo inteiro dormiu mais leve.

terça-feira, 25 de junho de 2019

Dose.

Entro arrastado mais uma vez na casa de um desconhecido que recebia nessa noite fria de julho alguns jovens em sua casa com as responsabilidades de trazerem suas próprias bebidas e não bagunçarem muito as coisas. Como acontecia muito nessa época, um amigo de um amigo estava ficando com uma menina que conhecia o dono da festa e por isso recebemos o convite informal em um grupo de WhatsApp. O trabalho tinha sido cansativo e eu estava numa parte especialmente empolgante do livro que eu lia nas horas vagas, então precisei de mais do que uma pequena insistência para sair de casa. O veredito veio com a garantia que iríamos embora no momento em que eu não quisesse mais estar lá, e a promessa de que eu ia adorar, ia me fazer bem sair um pouco de casa. Coloquei a roupa mais limpa que tinha, peguei uma garrafa de um vinho barato que estava parada em minha geladeira e esperei meus amigos chegarem. A casa ficava a poucos quilômetros da minha, em um bairro bem residencial. A música parecia vir dos fundos e não estava alta o suficiente para incomodar os vizinhos. Do lado de fora, um casal discutia o relacionamento enquanto era observado por um sujeito um pouco mais velho que tentava acender seu cigarro e era impedido de entrar. Entramos buscando algum rosto conhecido e logo encontramos o amigo do meu amigo que levantou do sofá para nos receber e logo nos apresentou o dono da casa. "A geladeira pode usar essa daqui e tem um isopor ali no fundo. O banheiro da casa é feminino, homens usam o banheiro lá de fora. Fumar só na rua. Fiquem à vontade, se precisar de algo é só me chamar". Enquanto eu procurava um saca-rolhas entre os talheres do meu anfitrião, eu já refletia que nem lembrava mais o nome dele. Encontrei meus amigos no fundo, encostados em um muro dando uma analisada na situação. Muitos rostos novos, poucos rostos amigáveis, a música estava bem baixa e tocando uma playlist nada a ver. Um sujeito de boina em um grupo do nosso lado, explicava para três caras e uma mina sobre as principais diferenças entre as fases do romantismo literário. Um dos sujeitos ouvindo a conversa mexia em seu celular e outro estava bêbado demais para captar o que estava acontecendo. Já a garota estava completamente dentro da discussão, exaltada, apontando os erros históricos que o primeiro cara citava. Em outro canto, encostados em um banco próximo a um tanque de lavar roupas, duas amigas ouviam um terceiro cara contar algo, completamente entediadas. Nós, eu e meus amigos, éramos auto-suficientes. Só queríamos mesmo um lugar onde pudéssemos beber e ver pessoas. Nossos assuntos flutuavam entre a atual situação do futebol brasileiro e as nuances de interpretação da Meryl Streep no seriado. Nosso talento era falar por horas sobre assuntos que nem sempre dominávamos, tínhamos descoberto o código do interesse, ou pelo menos a gente achava que sim. As horas se passaram, algumas pessoas entraram na órbita do nosso grupo e depois continuou sua noite, meu vinho acabou e aproveitei a oportunidade pra ir ao banheiro e tentar achar alguma outra bebida perdida na geladeira do dono da casa. Levantar do meu lugar foi o suficiente para perceber que o vinho tinha batido mais forte do que eu imaginava, talvez nos dias que ele ficou na geladeira, que eu não tinha ideia de quanto tempo, ele fermentou e ficou ainda mais forte, ou talvez eu que não estava me alimentando bem nos últimos dias. No banheiro fiquei uns segundos encarando minha face desmontada no espelho e refletindo como eu tinha chegado até ali. Não até a festa, pois isso eu acabei de narrar, mas até o estado deplorável que eu estava. O rosto muito magro, a barba rala por fazer, olheiras fundos e o cabelo sem corte. A frustração no trabalho não ajudava a lidar com a frustração da vida e só me afundava mais. O álcool era uma bengala torta que me ajudava a andar, mas poderia me derrubar  a qualquer momento. Escuto uma batida na porta e lembro que estou ali dentro a tempo demais. Saio pedindo desculpas e encontro um amigo: "Tá tudo bem, mano? Quer voltar pra casa?", saber que o acordo ainda valia me tranquilizou, mas queria dar uma chance praquela noite. Recuso e vou em direção a geladeira. Muita cerveja ocupando milimetricamente os espaços deixados entre vasilhas de comida guardada, frutas, legumes. Peguei a garrafa de água com a intenção de juntar a necessidade de ter um copo sempre à mão com a de me hidratar e acordar melhor no outro dia, ao fechar a geladeira vejo ela parada em frente a uma garrafa de vodka e uma dose já servida em sua frente, como se tomasse coragem pra virar. Eu não tinha a visto ainda durante a noite mas parecia conhecê-la de algum lugar. Ela ensaiava o movimento de virar com as mãos quando olhou pra mim surpresa, não tinha me visto ainda. "Eu viro uma dose com você se você quiser", eu disse já me arrependendo imaginando a vodka rsagando minha garganta. Ela olhou riu, disse "Não precisa", virou a dose de uma vez e saiu para o quintal. "Grande abordagem", eu pensei comigo mesmo enquanto enchia meu copo de água e voltava para o quintal, onde meus amigos me esperavam. Depois de assegurar a todos que eu estava bem e não queria ir embora, resolvi explorar um pouco a casa em busca da garota perdida na cozinha. Rodei todos os lugares ao meu alcance dentro da casa até que encontrei ela lá fora dividindo um cigarro com um amigo. Encostei perto e acendi um cigarro na esperança de entrar na conversa. "Eu fui muito grossa com você lá dentro?", e eu demorei alguns segundos pra entender que ela tinha falado comigo. "Meu amigo está falando que eu fui muito grossa com você", neguei sem graça. Queria entrar na conversa mas não imaginei que o assunto seria justamente eu. Respeitava o direito dela de ser grossa com um desconhecido, hoje em dia a gente nunca sabe quem está se aproximando. A conversa rolou muito fácil, ela fluia entre os assuntos com uma naturalidade incrível e me contou sobre suas paixões. Percebia as pequenas piadas que eu fazia no meio do meu tom sério e melancólico, me fez me sentir notado. Contou sobre seu curso que já estava terminando e o estágio encaminhado em uma grande empresa, estava vivendo seu sonho. E até ao ouvir minhas mazelas sobre meu trabalho e as coisas que eu gosto de fazer quando estou triste, ela parecia interessada. Seu amigo dividia seu entusiasmo pela vida, e insistiu para que eu bebesse com eles, um drink super forte. A garrafa de vinho já era um limite perigoso pra mim, mas levado pelo momento acabei aceitando um pouco do que eles tomavam. Quanto mais o tempo passava, mais nublado e mágico ficava aquela noite. Vê-la sorrir fazia tudo valer a pena, me preenchia por dentro de uma maneira que eu não sentia há anos. Meu copo de água se perdeu em meio a tantos drinks e logo  eu também me perdi. A lua iluminava forte nós três do lado de fora da casa, quando o celular do amigo dela tocou. Tenho um lampejo de memória meu vomitando no banheiro de dentro da casa. Meus amigos tentando me levantar do sofá e trazendo água pra mim. Eu pedindo desculpas para o anfitrião, em uma língua que com certeza não era a nossa e acordei em casa. Minha cabeça se comprimia de ressaca, usei o que me restava de forças para me arrastar ao banheiro, vomitar um pouco mais e me colocar debaixo do chuveiro. O dia já estava claro e no meu celular várias mensagens dos meus amigos pedindo notícias. Fiquei por alguns vários minutos debaixo do chuveiro tentando reviver a noite anterior, tentando lembrar da dupla mágica que foi minha salvação e minha perdição. Mandei mensagem a todos perguntando se alguém tinha visto os dois e se os conheciam, mas ninguém tinha visto nada. Fiquei horas sumido e quando me reencontraram eu já não estava em condições. Acharam que eu tinha ido para um dos quartos vazios da casa com alguém e ficado por lá. Tentava lembrar o nome dela ou descrever como ela era, mas tudo que me vinha era sua atitude, seu jeito de falar, de olhar nos olhos enquanto eu falava. Falaram pra eu focar em ficar bem que depois descobririam com o dono da casa quem era. Uma semana se passou e nada de notícias, ninguém os tinha visto e ninguém os conhecia. Até tinha feito a barba e me alimentado melhor na esperança de voltar a vê-la agora com uma figura um pouco mais aceitável, mas nada. Eu começava a duvidar da existência daquele momento, algo fora da realidade vindo de um vinho ruim mal armazenado por tempo demais. Até que, meu celular vibra em uma notificação: "Ainda vira uma dose comigo se eu quiser?"

quarta-feira, 19 de junho de 2019

De que adianta.

De que vale o Big Bang
Os átomos em rotação
As rochas se solidificarem
E a sopa em emulsão
Gerar vida aqui na Terra
Num cantinho do universo?

As células se multiplicarem
Em seres mais complexos
Os peixinhos criarem pernas
E depois subir nas árvores
Nosso cérebro aumentar
Dominar o fogo e o ar?

A caça e a plantação
O auge da civilização
A escrita e filosofia
A caverna de Platão
As naus de exploração?

De que adianta o Iluminismo
O planeta em rotação
Gutemberg e sua prensa
Enlatados na despensa
O tempo relativizado
Resolver as desavenças
Em um muro derrubado?

De que adianta a ovelha-clone
E qualquer smartphone
O fim de todas as doenças
E a erradicação da fome
De que adianta, você me diz,
Se sem você não sou feliz?

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Deito.

Minhas mãos guiam o concerto
Cerco seus dedos com meus medos
Me perco no cheiro do seu cabelo
Um conto que não planejei o enredo

Sua boca pressionada contra a minha
Como se sozinha ela não fosse uma
Sem atrito, nosso suor se mistura
Sem lua, nosso corpo brilha

Tropeço em meias, saltos, sapatos
Tateio os móveis do meu quarto

Sincronizo meu corpo no seu
Deito cansado em seu peito
Meu coração bate com o seu
E suspeito que não tem mais jeito

O sonho invade minha mente
Nele também estamos juntos
Você me confessa o que sente
Ri de algo e muda de assunto

Deitados debaixo das nuvens
Com as costas coladas no chão
Sentindo o movimento do vento
E você apertando minha mão

Acordo me sentindo seguro
Seguro você contra mim
Sinto o sentimento mais puro
De uma noite que não terá fim

terça-feira, 28 de maio de 2019

Boa Noite.

Desce do salto que o conforto te espera
Apaga a luz e acende uma vela
Deixa o perfume preencher o ambiente
Permita-se deitar e limpar sua mente
É disso que falam as grandes histórias
Momentos intranquilos que antecedem a glória
Então, por agora, apenas descanse
Ache uma posição e se dê essa chance
Amanhã promete ser um novo dia
Novos desafios e novas manias
Por enquanto, no entanto, só tente dormir
Em um esforço ativo, deixe o sonho fluir
Num piscar de olhos eles não se abrirão
E a calma te alcança em cima do colchão

segunda-feira, 27 de maio de 2019

Olho roxo.

Carregar o peso das suas escolhas
Cobra mais do que olhar o peso do outro
Pois não podemos impedir que a bolha estoura
E a bagunça se espalhe pelo chão de novo
Pois pra você mesmo não se pede desculpa
Não se justifica nem se refuta
O que você externaliza não muda
A verdade que só você escuta

Anos de terapia não são a solução
Se seu coração continua em negação
Achando que o mundo está contra você
Quando sua mente insiste em te prender
Em um mundo de ilusão e superfície
Apoiando-se no primeiro que ouvisse

Mas o olho roxo não é medalha
A pena dos outros não esconde a falha
Porque ela também é passageira
Não sobrevive nem à próxima segunda-feira
Enquanto sua luta for contra o mundo
Seu revés continuará cada vez mais profundo

quarta-feira, 22 de maio de 2019

A Vista.

Vou me permitir viver esse momento um pouco. Esse breve instante onde as coisas estão bem e prometem melhorar. Nesse tempo, uma felicidade contínua como poucas vezes vivi ou percebi com tanta clareza, deve ser enunciado para ser lembrado no futuro. Ele, potência mil de onde não se via nada, pega embalo em uma reta ascendente cada vez mais rápida. Não sei se meus planos se cumprirão, não sei se os sonhos que me deixaram sonhar vão se realizar. Pode tudo dar errado, inclusive, e no final eu estar muitos passos para trás. Mas agora, quero curtir e reconhecer onde estou. Quero agradecer todos que me trouxeram até aqui e aqueles que prestaram atenção o suficiente para se inspirarem. Inspirei-me em tantos outros, em seus próprios momentos de ascenção e clareza. Achei exemplo onde poucos viram e não diminuo nenhum empurrãozinho que me levou pra frente. Estou onde quero estar, com as pessoas que eu quero estar, fazendo o que eu gosto de fazer e olhando pros próximos passos e feliz demais com o que vem pela frente. Desvios são naturais e nos levam a lugares diferentes, mas vou me permitir parar agora, sentar na estrada, e observar a vista.

terça-feira, 7 de maio de 2019

Hoje.

Não sou quem eu queria ser porque eu mesmo não sabia quais eram minhas opções, mas sou uma versão melhor de mim. Principalmente em critérios diferentes dos que eu julgava antes. Se eu achava que estava em meu auge, olhando ao meu redor e vendo que me destacava, mal eu sabia o quanto ainda poderia crescer em outras direções e os traumas que aquele caminho tinham causado. Tive que fechar o olho e dar um salto de fé, em um rumo que eu, em toda minha segurança, tinha medo. Olhar pra dentro foi doloroso, já que com os anos aprendi a negligenciar minhas vontades com receio de me frustrar. Aquilo estava tão encrustado em mim que eu nem me percebia mais. Mas como tirar band-aids, nesse processo me obrigou a tomar uma decição e ação. Essa ação me levou pra fora em lugares que eu já tinha ido mas que ainda não tinha estado. Aprendi a andar de uma nova forma, com um olhar diferente e, finalmente, independente. A dependência que se manifestava de maneiras não-óbvias me prendia, como se não me julgasse merecedor apesar de me entender capaz. Mas sair de casa, pelos pequenos períodos, me fez entender que posso ir mais longe. A casa, que já não é casa a muito tempo e eu ainda me apoiava em azulejos quebrados, pode ser onde eu estiver, me entender como minha própria morada (como diz a música aqui descontextualizada) é estar confortável onde eu estiver. Minha história, como o próprio nome diz, existiu e me formou, mas é história e não há de se repetir, nem aqui nem em outro lugar, e esse último processo (um ano e meio? dois?) me fez estar mais confortável com a inquietude e frustração que estar aqui me causava, me mostrando a saída. Ter pessoas ao meu lado passando por processos parecidos, dispostas a me entender e se fazer entendidas, foi crucial também. Não me sentir o Don Quixote em sua jornada contra os gigantes, entender que os gigantes são reais e que a batalha é vencida em conjunto. O apoio veio de outros lados inimagináveis, não impossíveis. O empurrão e a cobrança de me mover, mesmo quando eu perco o momento (falando de física) vieram na medida certa para me manter ativo. Até os problemas e dias ruins, que antes eram protagonistas, começaram a ser meros coadjuvanets que pouco interferem na história, ou me trazer novas perspectivas. O filtro sou eu, e na verdade sempre fui. Agora, como um prisma do outro lado da lua, consigo refratar o que recebo em arte e aprendizado. O passo, o peso, muitas vezes difícil, já anda com naturalidade e leveza. Não sou meus problemas, não sou meu passado, eu sou o que eu escolhi ser e o que vem depois. O esforço na mudança, ainda ativo como tantos outros na minha vida, começa a fazer parte de mim naturalmente e me torno uma versão melhor de quem eu era, como a continuação de um filme que muda de gênero e consegue superar o sucesso do antecessor. Hoje sou um novo eu que não esperava e, diferente do meu eu de ontem, já entendo que o de amanhã vai sim ser melhor. Só me resta a curiosidade de saber como.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Amanhã.

Me vejo mais leve e me movimento
O vento me leva em passo lento
O peso nos ombros se dissipa
Fortifica os joelhos e solidifica
O próximo passo passa rápido
Peso e descarto o que ficou pra trás
Trago comigo muito bem guardado
Tudo o que sobrou do que não quero mais
Mas sei da incerteza do meu futuro
Mando recado pra quem eu vou ser
Que se meu eu de ontem sobreviveu a tudo
Não vai ser o de amanhã que não vai viver

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Caminho.

Aos 13, eu descobri que poderia ser quem eu quiser
Aos 15, eu fui quem eu achava que era
Aos 18, me contaram que não era legal
Aos 21, eu me esforcei pra ser diferente
Com 23, eu tive uma visão clara da evolução
E com 25, eu me coloquei no caminho certo
Com 27, eu parei e não cheguei onde queria
Aos 29, percebo que ainda tem muito por aí.
Racionalizar os sentimentos
Sentir não é errado
Respeitar os meus limites
Sem limitar minhas escolhas
Entender o meu processo
E o processo de quem eu amo
Dar sempre o próximo passo
Pois mesmo sozinho,
Sempre vai ter gente do meu lado.

E quando for mais difícil
Quando o joelho falhar
Para e respira
Não tem problema em voltar
Porque quando estiver lá longe
Uns passos pra trás ainda vão ser
Muito na frente do que você estava.

terça-feira, 23 de abril de 2019

Vento.

Olhar pra frente e ver o oceano me cercando, sem indicação para onde ir mas também sem amarras. Treinado para estar preso, hesito em começar, como se minhas pernas ainda sentissem o peso das correntes. Uma leve brisa corre em meu rosto que me faz pensar por um segundo como deve ser voar. Ao mesmo tempo, sinto a água me levando levemente para outro lugar. Impossível ficar parado quando o mundo parece te querer longe. A pressão em meus ouvidos faz minha cabeça doer, como se eu não soubesse que pra ela diminuir é só dar alguns passos. Não estou preso mas ainda me sinto. Estou leve o suficiente para me deixar levar, não sofro com as dificuldades. O que me segura agora é invisível e imaterial. Como o vento, que me empurra. Só preciso aceitar e planar.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Gaiola.

O que é essa sensação de desprendimento que cresce? Depois de tanto tempo que eu me esforcei para fazer parte? Depois que eu voei por um tempinho e a situação me isolou do solo, parece que tudo continua pequeno mesmo depois que eu pousei. Os problemas não me atingiam lá de cima, as expectativas também não. Fui livre como me preparei para ser. E agora que voltei, estou quase sem lugar, como se aqui também fosse só passagem. O destino é para fora, o lugar que não me permitia conhecer. E me deixar vagar sem rumo, deixar o acaso tomar conta dentro do pequeno controle que tenho de escolher estar naquela situação. O poder que isso dá é imenso, pois toda dor é menor e passageira quando você olha o todo. Vai doer, com certeza, como uma tatuagem sofrida que pra sempre está marcada. Mas tudo me empurra pra fora, mesmo fora do meu controle. Apressam o processo, bloqueiam meus desvios. A ladeira me deu o embalo necessário para ganhar velocidade e voar novamente. Mas eu ainda vacilo, desacostumado a poder. Ansiando por uma direção que não depende de mais ninguém. Só me querem fora daqui, tudo conspira. Eu deixo a corrente me levar, menos preocupado em firmar os pés no chão. Outras quedas virão mas também novos vôos. Não adianta olhar da gaiola e imaginar o mundo lá fora, a porta está aberta.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Aquário.

Esbarro em paredes de vidro
Que não tinha notado até então
Talvez por nunca ter ido
Muito além do que me alcança a mão
O crescimento força as paredes
Rompendo aos poucos o que me prende
Sem indicação de caminho certo
Me deixando a deriva num mar aberto

Flutuo sem direção
A corrente indica um rumo
Mas no nado está a intenção
Na potência do querer que consumo

quarta-feira, 3 de abril de 2019

Orquestra.

O suor na testa
Testa a resistência
E atesta o esforço
No osso, o músculo grudado
Fatigado em câimbra
Sombra projetada
Na parede branca
Emulando o movimento
Lento e devagar
Vago os dedos no teu corpo
Sopro quente e ofegante
Preso como presa em seus dentes
Imóvel olhar hipnotizante
Antes do auge, ruge
Urge o tempo em instante
Instrumentos sincronizados
Em ritmo e tempo
Maestria regente
E afinados

quarta-feira, 27 de março de 2019

Areia.

A areia é o efeito colateral
De milhares de anos
de ondas batendo em pedras
Um leve tropeço no final
De vários planos, pontos e metas
Um pequeno preço a se pagar
Pelo movimento errático da natureza
A onda feroz vinda do mar
Engolindo aos poucos a sua presa
Se pudesse a pedra ficava mais
Mas se vê aos poucos se desfazendo
Em nova forma, novos cristais
Novos lugares guiados pelo vento
Assim segue o caminho torto
Assim funciona o seu destino
Onda que bate forte no morro
Carrega aos poucos o seu refino

sexta-feira, 22 de março de 2019

Lição.

Você consegue sentir o peso saindo das suas costas?
A aposta que não tinha mais fim teve enfim um vencedor.
A dor, por maior que fosse, diminuiu gradualmente.
E sua mente achou a clareza que tanto procurava.

Estava difícil, como é todo trajeto
Perdido, nas primeiras páginas do projeto
O teto desabando e ficando sem chão
Tentando diferenciar o real da ilusão
Mas agora, pés firmes dão o passo
Ditam o ritmo, traçam o traço
Fora do caminho trilhado
Expandindo o possível do inacreditado

Sem asas você voa, boa visão do que vem pela frente
Enfrentar novos desafios, fio afiado corta rente
Se os tropeços doeram no começo
Agora você tem a certeza de joelhos resistentes

quarta-feira, 13 de março de 2019

Muralhas.

Alguma coisa repousa debaixo de tudo
Disfarçado com o chapéu e os óculos escuros
Que nem toda a roupa no chão revela
Nem mesmo o Sol ou a luz de uma vela
O que está por trás do sorriso forçado
Que o olho vermelho disfarça embaçado
As palavras desviam em outros assuntos
O que é que se esconde por baixo de tudo

Traumas tão grandes que inquietam a alma
Medos tão fortes que enrijecem os dedos
Muros tão duros que não se fazem mais furos
Na esperança que sumam quando ficam em segredo

Mas a vida é jogo
Cada um dá seu passo
O turno acaba e conquista seu espaço

Só que portas fechadas
Mantém as visitas de fora
De longe e nunca mais vistas
A dor encarada pode ser dividida
Não carregue sozinho o peso da vida


sexta-feira, 1 de março de 2019

Juntos.

Você soltou a mão por um segundo e me perdi na multidão de gente. Olha em volta em busca do lenço azul que você usava na cabeça não consegui te encontrar. Me preocupei que você se preocuparia sobre onde eu estava mas logo passou, é carnaval e cada um sabia bem seus próprios limites e como se manter seguro. Me deixei aproveitar as diferentes músicas que dava pra ouvir da minha posição, uma bem próxima, algo que era considerado brega quando saiu mas que hoje, vinte anos depois, ganhou status de cult e era entoado por todos a minha volta. Um pouco mais distante eu ouvia uma música que reconhecia. O ritmo e depois a letra. Lembro de adolescente ouvir aquilo na tv e me perguntar o que significa. Perdido na metáfora, que hoje eu entendo que era apenas sexo como a maioria das músicas que existem, criei minha própria interpretação quase que literal do que ela significa. Eram tempos mais puros, da minha parte pelo menos. Meu olhar continuava viajando em busca do seu lenço azul, e já pensando em como atravessar aquela multidão para o nosso ponto de encontro caso nos perdêssemos. Uma mão pousou no meu ombro e quando eu já virava automaticamente que tinha namorada, você sorridente me entregava um copo cheio de uma bebida azul. Seu sorriso me trouxe alívio e me fez perceber melhor onde estava. A atipicidade da situação, como cheguei ali, o que estava ouvindo, as pessoas em minha volta e, principalmente, estar com você me trouxeram uma sensação de leveza. Como no dia em que deitei em seu colo pela primeira vez e soube que ali eu poderia repousar. Sei que ali, no meio de milhares de pessoas, eu posso desligar minhas defesas. Os escudos e muros que construí em longos anos de exposição ao mundo e que moldaram a dura pedra dos meus valores. Por um momento, meus pais deixaram o chão pra trás e flutuei sobre todos nós. Enquanto me afastava, via quase em uma clareira, nós dois parados no meu momento de realização. Nem a música eu ouvia mais, só o bater do meu coração. O silêncio do momento indicava que eu não estava mais ali, transitava em uma outra dimensão onde coisas como essa se eternizam. Foi sua respiração próxima a minha boca que me trouxe de volta. Você repetiu o convite para irmos embora. Peguei o copo de sua mão e nos guiei em meio a multidão. Aquele dia eu voei. Não sei se vão acreditar em mim ou se um dia isso vai se repetir, mas a leveza desafia a gravidade e flutua a menor brisa. Se foi você que me soprou ou as forças da natureza, nunca vou saber. Mas lá do alto eu posso afirmar: nós somos muito bonitos juntos.