domingo, 30 de junho de 2019

Desculpas.

A medicação já estava fazendo efeito há tanto tempo, que eu não conseguia mais medir o tempo. Meus cochilos duravam horas, dias às vezes, e minha mente transitava entre o quarto do hospital e um completo nada com mais facilidade do que eu gostaria. No começo ainda me traziam comida, depois tive que me contentar com o soro que me davam pra me manter. Não que eu sentisse fome, mas a memória dos sabores e da satisfação ainda era muito recente pra mim. O frio e o calor também se revezavam com facilidade no meu corpo, logo me acostumei a estar sempre suando, pelo menos assim diminuía as vezes que eu precisava ir ao banheiro, sempre um momento mias constrangedor pra mim do que pra enfermeira. Meu corpo, fraco, mal conseguia apertar o botão de auxílio, mas a equipe estava sempre alerta comigo. Qualquer descuido podia agravar demais minha situação.
Os médicos não me falavam, mas muitas vezes eu ouvia eles dizerem sobre meu estado enquanto achavam que eu dormia. Não havia muita esperança porque não havia resposta. Os exames eram inconclusivos e o tratamento não demonstrava grandes resultados. Com meus olhos abertos, a reação era sempre outra. Traziam boas notícias e esperanças. Como se viver meus últimos dias feliz diminuísse um pouco o peso desses meus últimos dias.
"As flores morreram antes de mim", eu disse numa tentativa de quebrar um pouco o gelo mas só consegui fazer minha mãe chorar ainda mais por não conseguir cuidar nem das flores que levou pro meu quarto. Dizem que você se acostuma com a dor, mas estar acordado era insuportável todos os dias. Por isso meus olhos escolhiam se fechar por muitos momentos, na esperança de que se eu não me mexesse, meu corpo se desligaria sozinho.
Sempre gostei muito de viver, e investi anos demais da minha vida nisso pra abrir mão facilmente, mas cada dia que eu acordava era uma decepção. Morrer dormindo era minha escolha desde sempre, nas brincadeiras de criança onde isso não passa de uma ideia tão distante quanto um filme no Espaço Sideral. Hoje era uma realidade e um desejo, meu corpo poderia se desligar a qualquer momento, mas insistia em não. Pros meus pai eu era um milagre, um sentimento egoísta de me manter ao lado deles a qualquer custo, como prova do sucesso deles como pais, mas se o Deus que eles acreditam fosse tão poderoso, ou piedoso ao menos, já teria me poupado desse processo cansativo e doloroso. Ou me explicado melhor o plano tão grandioso que me transformaria meu martírio em uma peça-chave. Mas não, era sempre a enfermeira, ou meus pais. Alguns amigos. E o ritmo cada vez menor, e eu ficando cada vez menos ativo e interativo.
Até que hoje, você veio. Sem dó, mas sem peso nas palavras, me falou sobre como eu poderia ter sido uma pessoa melhor. Falou também sobre como eu te machuquei tantas vezes, machuquei meus pais e as pessoas na minha volta. Assumi cada erro e tentei contextualizar o que eu pensava na época, mostrar um outro lado. "Nunca me considerei uma pessoa ruim, não queria seu mal", disse mas você discordou. Com a delicadeza de sempre, me ensinou muito tarde demais. Porque eu também percebi tarde demais o quanto você me fazia bem. Devaneios infantis de um homem que viveu demais e aprendeu pouco. Aprendizado tardio de coisas que deveriam estar ensinar na escola. Os bons momentos eram eclipsados pelo meu passado e pelo remédio que mais uma vez me derrubava. Pedi desculpas por não conseguir continuar a conversa e pedi desculpas por tudo que eu fiz. Tudo mesmo, cada detalhe. Fechei meus olhos pela última vez, carregando comigo toda a culpa dos meus erros.
Hoje, o mundo inteiro dormiu mais leve.

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