quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Herdeiro.


Dizem que estou louco, mas mais louco está quem acha que observarei minhas terras serem invadidas por bárbaros estrangeiros! O que meu pai diria? Pelo menos nosso povo nunca duvidaria de suas decisões. Malditos ingratos! Dediquei minha vida a eles. Enquanto meu pai ocupava o trono com mãos de ferro, era o meu pescoço que estava sendo arriscado na frente de nossos soldados.
Meu batalhão me seguiria até os portões do inferno, mas hoje olho para meu exército e só vejo gordos, preguiçosos, aproveitando o almoço fácil dos campos de treinamento. Meus irmãos, meus cavaleiros, morreram para que um bando de imprestáveis pudessem reclamar de meu governo.
Minha esposa vira o rosto quando passo, passa verões na nossa casa de campo e invernos na casa de seus pais. Levou meu primogênito com a desculpa da erudição, me impedindo de ensiná-lo a arte de se empunhar uma espada.
Sou um velho abandonado em um castelo de inúteis. Desconfio que metade dos cozinheiros já não trabalham mais aqui. Meu serviçal de confiança, meu braço direito, anda me escondendo coisas. Percebo as movimentações e as palavras miúdas pelos corredores onde passo. Nem meus cães me respeitam mais.
E ainda assim, toda manhã, desembainho minha espada para treinar sozinho. Do frio da manhã até o ponto do sol mais alto no céu. Vez ou outra um jovem soldado junta-se a mim, desconfio que por dó ou por ordens de seus superiores. 
Me tornei o velho que todos riem quando vira as costas. Me lembro do velho ermitão que surgia no reino quando eu era menor, cheirando urina e carregando velhas panelas. Nós jogávamos maçãs podres e corríamos, ele as comia com seus dentes podres. Não me jogam maçãs ainda, mas não demorará e o desrespeito deixará de ser velado.
Bando de ratazanas! Maldito meu ancestral que colonizou essas terras e a deixou própria para o plantio. Que esses parasitas morram da febre negra! Sinto falta das palavras duras do meu pai. Ele teria cortado a cabeça de um e os outros teriam aprendido a lição. 
Maldito coração que me fez me apaixonar por uma donzela que amava a outro. Nem todo o ouro do mundo compra o coração de uma mulher. Tenho seu primogênito mas não tenho sua atenção. Desconto minhas noites frias nas pobres criadas do reino. Quando ouço o choro quase silencioso do pós-coito, mando-as de volta a seus aposentos e tento me aproveitar ao máximo o cansaço momentâneo do meu corpo para conseguir dormir.
Velho, louco e cansado. Todos esperam para que eu durma de uma vez por todas o sono eterno enfim. E cada vez mais espero também. Me juntar a meus últimos aliados, se é que meu sangue, mesmo que derramado fora de batalha, ainda valha alguma coisa. Ó, Senhor das Guerras, por que não me proveras de uma morte honrosa? Por que me deixastes idoso, senil e desconfiado? 
Cada desjejum é a esperança de que algum criado tenha finalmente criado coragem para me envenenar de vez. Covardes! Nem para tramar minha morte esses infelizes conseguem. 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A volta do Gram.

Sobre uma banda que me fez mudar mas depois mudou de mim.

Quem me conhece há tempo sabe que sou um cara de poucas bandas. Daqueles chatos que gostam demais de cinco bandas e não se dá ao trabalho de conhecer outras coisas. Em minha defesa, eu escuto as outras coisas, só que nada me prende a atenção mais.
Gram foi uma das bandas que marcaram minha vida. Pontuando a transição entre o “rock comercial” para o “rock independente”, Gram foi o responsável não só por me abrir as portas de um mercado nacional de música de qualidade, como também foi quem em fez começar a valorizar tanto o uso da nossa língua nas músicas. É uma língua difícil, mas quem a domina deixa tudo mais bonito.
Era um Go Music em 2005, um dos primeiros grandes shows de rock que fui na vida, e o palco independente daquele dia em específico moldou meu gosto musical por muito tempo. Ludov, Cachorro Grande, Matanza e Gram se apresentaram. Todos restritos a pequenez do palco secundário do festival, mas que cresceram absurdamente em minha vida a partir dali.



Gram foi a maior surpresa. Um rock bom de se ouvir, que se valia do velho clichê da falta de rótulo. Os comparavam muito com o Los Hermanos, mais pela escolha de se cantar em português e não soar como um Pop Rock grudento do que por ter alguma semelhança realmente.
As músicas falavam de amor. Um amor que traduziu sentimentos confusos de um Toscano adolescente por alguns anos. É estranho quando alguma música parece ter sido feita para você especificamente. Mais estranho ainda quando você percebe que muita gente se sente da mesma forma que você sobre as mesmas músicas.
Quando veio o anúncio de um segundo CD, bateu aquela insegurança de eles não conseguirem superar essa expectativa. “Será que essa banda vai continuar falando sobre o que eu sinto, mesmo o que eu sinto hoje seja algo tão diferente do que eu sentia quando os conheci?”. E acertaram perfeitamente. As músicas agora falavam de um amor mais maduro, que aceita suas falhas e pede perdão. Falava de conviver com os erros, de aceitar e de amar acima de tudo, mesmo quando não se está mais do lado de quem se ama. Falava de outros tipos de amores.



Foi quando veio a notícia. Por motivos pessoais, Sérgio Filho, o vocalista e principal compositor, sairia da banda. Os shows já não se vendiam mais e o desgaste não era recompensado. Foi quando aprendi a comprar o que eu gosto. Cds, dvds, camisetas. Baixar MP3 não sustenta seu artista preferido. Aprendi da pior maneira.
Entrei em um limbo musical, onde nada mais conversava comigo. Conhecia novas bandas, me interessava por uma ou outra música, mas logo o interesse passava. Boatos sobre uma possível volta, sobre outro vocalista entrar no lugar, tudo muito vago e distante. Fui voltar a consumir música anos depois quando conheci Fresno e Brand New em seqüência.
Então, há poucos meses, vem a notícia de que Gram voltaria. Com contrato com a Sony, estavam prontos para retornar. Sem grandes confirmações ficou a dúvida: será que o Sérgio voltaria? Minhas habilidades de stalker me levaram a dura realidade. Ele não queria mais mexer com isso. Sete anos depois e o sentimento dele ainda era o mesmo. Sua carreira como ilustrador e designer ia muito bem, a música não cabia mais em sua vida profissional.
Entre as pequenas informações soltas, Gram anunciou seu novo vocalista. O manifesto que o defendia era bem convincente. Afirmava que eles não voltariam caso não acreditassem na capacidade do novo sujeito de honrar e continuar o legado da banda. E o ponto principal: sete anos depois, os integrantes também não eram as mesmas pessoas.
Que diabos, eu também não sou a mesma pessoa! Nada me garante que o Sérgio, caso voltasse, supriria minhas expectativa de falar sobre a MINHA vida da maneira que ele falou, por acaso, anteriormente.
Então tem essa banda. O diferencial dela? Carrega o nome e legado de uma banda que foi muito importante na minha vida. Isso já é suficiente para que eu os dê uma chance. Fato raro em minha vida.



Ainda não sei o que pensar sobre essa música nova. Quero ouvir o cd inteiro antes de dar minha opinião sobre a volta da banda. É melhor do que muita coisa que está aí, mas preciso de mais do que isso. O instrumental é Gram, sem dúvida. A guitarra do Marco Loschiavo é muito característica. Sinto falta dos vocais do Sérgio Filho, com certeza. Mas o trabalho dele está aí disponível pra mim sempre que precisar.
Fico feliz por ver eles ainda produzindo, fazendo uma música que (tenta ao menos) fale mais do que sobre sentimentos superficiais. Talvez eu não os acompanhe muito daqui pra frente, mas eles tem todo meu apoio para continuar. E quando eu puder em algum show, eu irei sem dúvida. E vou gritar ao máximo as músicas que amei, com ou sem Sérgio Filho no vocal. Quem sabe até tietar pra tentar pegar outra palheta e guardar como recordação de um momento que não volta mais em minha vida, nem se eles quisessem.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Branco.


Ele acordou numa sala branca. Todos já conhecem o contexto. Não lembrava como tinha chegado ali e a porta em sua frente estava trancada. Gastou as primeiras duas horas tentando abrir a porta, chegou a tentar arrombá-la, mas eventualmente desistiu. Começou a repensar o que ele teria feito para alguém o prender daquela maneira. Vivera de maneira patética até então, sem grandes impactos na vida dos outros. Talvez aquela ex-namorada o qual nunca teve coragem de encontrá-la depois do término. Nem para avisá-la que tinham terminado. Ela com certeza teria motivos para prendê-lo. O pai dela tinha alguma relação com militares, mas ele não conseguia se lembrar exatamente qual. Apesar que ela era um doce de pessoa, não faria mal a ninguém. Um colega de trabalho, talvez? Ele tinha crescido relativamente rápido dentro da empresa, poderia ter causado inveja de alguém. A quem ele queria enganar? Ninguém se importava com o cargo que ele ocupava. E, na verdade, só tinha chegado até ali por uma coincidência de fatores de pessoas deixando suas vagas para ir para lugares melhores e não ter ninguém mais adequado para substituí-las. Ele sempre desconfiara que o senhor dono da banca de revistas o olhava torto. Talvez pela maneira como ele pedia o jornal, podia soar arrogante. Ele não tinha muitos amigos, quanto menos inimigos. Não era alguém que se destacava muito.  A luz sempre ligada e a falta de janelas não o deixava saber quanto tempo estava ali pensando sobre tudo.

Ele começou a ouvir um barulho de conversa através da porta. barulho de fechadura. A luz apagou, um barulho como se um gás fosse liberado na sala. A porta abriu, e pelo contraste da luz lá fora e o gás, duas pessoas disformes e mascaradas. Sua visão já turva, suas pernas enfraqueceram. Só conseguiu ouvir ao longe "Como vocês me pegam o cara errado…".