quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

O último conto de Natal.


Parte 1


Não entendi direito o convite dos Warrelys para visitá-los hoje a noite, mas como somos novos na cidade prometi pra mim mesmo que aproveitaria toda oportunidade de fazer amizades e conhecer melhor as pessoas da região. A Ana já avisou que não queria ir e usaria o bebê como desculpa.
Pobre Hugo, nem um ano de idade e já carregando a culpa da mãe.
Inclusive, ele foi o principal motivo para nos mudarmos. A vida agitada da cidade não acomodava os planos que tínhamos pra ele. Larguei meu emprego, juntamos nossas economias e viemos para cá. Longe da poluição, do stress, dos carros, das más influências. Um lugar onde nosso filho poderia brincar até tarde na rua enquanto eu e a Ana cozinhamos e bebemos um vinho. A Ana amava a cidade grande. A sensaçâo cosmopolita de estar onde tudo acontece, de ter algo pra fazer a um telefonema de distância, mas a gravidez bateu pesado demais. Primeiro se encheu de preocupações, ela achava que não seria boa mãe o suficiente, que o esqueceria dentro do carro ou algo assim. Depois veio a depressão. Não consigo descrever o medo que ela sentia quando via o pequeno Hugo. Repulsa, até. Com o tratamento isso passou e pudemos conversar melhor sobre o que esperávamos dele. Nos mudarmos veio naturalmente, até um pouco para deixar pra trás o período pesado que passamos.
Há um mês atrás chegamos em Lord Duph, uma pequena e pacata cidade a norte de tudo o que é desenvolvido. Inclusive, a posição foi estratégica. Fica no meio exato entre a cidade dos meus pais e a cidade dos pais delas. Até cogitamos nos mudar para mais perto da cidade natal da Ana, mas lembrar que os traumas que ela passou foram justamente por causa da relação conturbada com sua mãe não contaram muito a favor nesse quesito. E Lord Duph era tudo o que a gente poderia sonhar. Uma cidade antiga, onde todos se conhecem, escola de qualidade perto de casa, amigos que viram praticamente parte da família, todos morando um ao lado do outro e sempre dispostos a ajudar.
Nos mudamos para uma casa grande e aconchegante, cheia de quartos e corredores, com uma grande lareira e em um preço imperdível. Parece que o primogênito da família que morava lá se mudou para a capital e a família foi junto, deixando o lugar vago. A história pouco importava, o lugar era lindo principalmente nessa época do ano. Nos mudamos com o começo da neve, logo passamos o tempo entre a sala com a lareira e o quarto com o aquecedor. Era ótimo pois era uma desculpa a mais para estarmos sempre perto um do outro.
Enquanto eu fazia testes no pequeno jornal da cidade, a Ana cozinhava e mantinha a casa limpa. Desacostumada com um lugar daquele tamanho e com o trabalho de casa, a gente publicava todos os dias uma notinha no jornal em busca de uma governanta que pudesse nos ajudar com a casa e o bebê. Ninguém respondia, mas tínhamos decidido esperar pelo menos até o inverno passar pra realmente buscar alguém.
Logo em nosso primeiro dia, conhecemos o casal Warrelly. Toda a comunidade olhava de longe aquele caminhão de desconhecidos se mudando para a casa no meio da quadra, mas foram eles que vieram se apresentar e se prontificar para o que precisássemos. Ele, Arthur, um pouco calvo e com uma barriga proveniente dos seus cinquenta anos. Ela, Marta, arrumada como quem está sempre pronta para sair de casa, algumas plásticas aparentes e outras não tão aparentes assim. O sorriso aberto e a fala fácil nos fez nos sentir parte da comunidade imediatamente. Uma pena o resto da vizinhança com seus olhares curiosos e julgadores não transmitir a mesma receptividade.
Já na primeira semana eu fui atrás de uma espécie de estágio no jornal da cidade que parecia mais um teste para ver se eu poderia fazer parte do grupo. Conhecemos o dono da venda, o delegado local, a florista, o padre, o responsável pelo cinema da cidade. Todos nos atendiam muito bem mas mantinham um ar desconfiados com nossa presença. A sensação era sempre a de que nós não éramos dali e precisávamos nos provar ante a sociedade antes de ser totalmente aceitos por aquelas pessoas. Como a Ana não saía muito de casa, não percebia muito e até debochava um pouco das minhas desconfianças. Falava que logo passaria.
Ela riu ainda mais quando eu comecei a decorar nossa casa para o Natal. Nós decidimos que criaríamos nosso filho sem religião e tentaríamos evitar todo tipo de misticismo com o garoto, mas quando vi a cidade inteira comentando sobre o que fariam em suas casas, como seriam as celebrações, decidi que seria a hora de enturmar. Montei a árvore próximo a janela principal e comecei a decorar a fachada.
E foi enquanto tentava em vão colocar uma rena luminosa em nosso quintal que o Sr. Warrelly me abordou e perguntou o que eu estava fazendo. Inseguro pelo ar interiorano de sua fala e sem saber direito se era deboche ou uma dúvida real, respondi que estava decorando minha casa para o Natal, assim como as outras casas da rua. Com seu sorriso sempre aberto, ele disse “Ah… sobre isso. Vamos nos reunir lá em casa hoje a noite para fechar alguns pontos sobre o Natal desse ano. Você com certeza deveria ir lá”. Apesar de não entender direito o que seria discutido, fiquei animadíssimo com a oportunidade de mostrar àquelas pessoas que eu poderia ser um deles se eles me desse um pouco de abertura.


Parte 2


Na cidade grande, nossas visitas eram sempre a amigos próximos. Experiências casuais, onde eu não me dava o trabalho nem de colocar uma calça mais arrumada. Dessa vez escolhi minha melhor camisa, arrumei o cabelo, peguei uma garrafa do melhor vinho que tinha sobrevivido às crises e à mudança e saí de casa. A Ana ria da minha preoupação, falando que ia ser só uma reunião para decidir qual casa ficaria mais bem decorada ou algo assim. Deixei ela e o Bebê assistindo a uma reprise de um filme qualquer de Natal e fui até a maior casa do quarteirão, logo no começo da rua.
Cheguei lá e vi vários carros estacionados. Parece que todos da cidade foram convidados. O Sr. Warrelly me recebeu na porta antes que eu me anunciasse. “Só estávamos te esperando!”, ele disse com o mesmo sorriso aberto de sempre. Entrei, tirei meu cachecol e o observei enquanto guardava o vinho que eu levei. A sala dele era gigantesca. Muito iluminada e cheia de cristais, dava a mesma impressão de boas vindas que seus donos. A escadaria dupla rumo ao segundo andar lembrava de alguma forma o sorriso amplo do casal.
Parecia que toda a cidade estava lá, apesar de ninguém além da Sra. Warrelly ter se dado ao trabalho de me cumprimentar. Quando ela perguntou da Ana, sorri desconcertado dizendo que tinha ficado em casa com o Hugo, criança pequena, você sabe. Todos comiam pequenos petiscos em uma grande mesa de frios e bebiam vinho e champanhe.
Aproveitei que ninguém parecia ter notado minha presença para tentar ligar pra Ana e tentar convencê-la uma última vez a ir pra lá. Era nossa chance de sermos aceitos na cidade! O telefone tocou, tocou e nada. Provavelmente ela tinha aproveitado minha saída para dormir. Os serviços de casa e os cuidados do bebê eram bem cansativos. Uma pena, ela adoraria todo esse luxo.
Por muitas vezes tentei chamar a atenção do Sr. Warrelly para me explicar o que estávamos comemorando, mas com tanta gente em volta ele facilmente se distraia no meio de sua distribuição contínua de sorrisos. Minha dúvida durou pouco quando vi ele e a Sra. Warrelly subirem para o centro da escada dupla e baterem suas taças de cristal para chamar a atenção de todos. As pessoas se calaram e observaram a fala do casal.
“Queríamos agradecer a todos pela presença no nosso 21º Jantar de Natal da Família Warrelly, em homenagem aos falecidos Sr. Albert e Sra. Jane Warrely, meus pais, e em memória da última Noite Feliz em Lord Duph. Antes de mais nada, gostaríamos de parabenizar ao Oficial Winston pelo ótimo trabalho durante o ano, coibindo a depredação dos bens públicos e detendo a gangue de pertubadores responsável por espalhar mensagens de medo entre nossas crianças. Gostaríamos também de parabenizar a Sra. Faulkner pelos arranjos de flores que nos cedeu para a cerimônia deste ano e pelo ótimo trabalho nos canteiros centrais da prefeitura. O prefeito Taylor não pode comparecer este ano mas está representado por sua lindíssima esposa. Obrigado, Ângela.
Esse ano também temos uma pessoa nova entre nós, gostaria de apresentar-lhes Eugene Phillips. Venha, venha até aqui!”
Todos olhavam para mim, e ele realmente havia dito meu nome. Meio sem jeito, fui abrindo caminho até o centro da escadaria e me juntei ao casal Warrelly.
“Eugene se mudou para a cidade com sua esposa e filho e tenho certeza que eles estão muito dispostos a fazer parte de nossa comunidade. Seja bem vindo!”. Eu agradeci sem jeito enquanto ele me guiava para fora da escadaria e continuava sua fala. “Ano passado foi um grande desafio. Tivemos algumas perdas, é verdade, mas diria que o resultado final foi muito positivo. Esse ano o desafio será ainda maior. Que comecemos os preparos!”. Todos bateram palma e o casal se juntou às pessoas no salão.
Eu não estava entendendo nada, mas fui pela onda. Tentei mais uma vez conversar com o Sr. Warrelly, em vão. Peguei uma taça de vinho e encostei em uma das colunas de mármore que iam até o teto do pé direito duplo. Liguei mais uma vez para a Ana e nada dela atender. Comecei a ficar preocupado.
Percebi uma movimentação estranha das pessoas indo em direção a uma das salas que julguei ser a biblioteca e acompanhei eles observando um pouco a distância. Como em um filme, uma das estantes da biblioteca estava afastada da parede, revelando um portal de pedras e uma escadaria descendo. As pessoas foram descendo como se já soubessem o caminho, até que fiquei pra trás.
“Por que não se junta a eles?”, tomei um susto com a voz e o rosto sorridente da Sra. Warrelly atrás de mim. “Eu… não sabia se podia” no que ela respondeu ”Claro que pode, você é um de nós agora”. Desci a escadaria e observei a Sra. Warrelly fechando a estante atrás de nós. A pouca luminosidade oferecida pelas tochas na parede constratava em minha cabeça com o salão ultrailuminado que estávamos há alguns minutos.
Ela tocava minhas costas me empurrando para o fim das escadas, eu cada vez mais relutante e arrependido de ter ido até lá. O fim da escadaria revelou um salão escuro, provavelmente do tamanho do salão de cima, mas com paredes de pedra e uma longa mesa no centro onde meus vizinhos se acomodavam. A iuminação, toda por velas no centro da mesa e nas laterais das paredes, tornava aquilo muito assustador. A Sra. Warrelly me encaminhou para uma cadeira e se juntou ao seu marido na ponta da mesa.
No que ele chamou a atenção de todos e disse: “Anualmente, nos sacrificamos em honra daqueles que nos foram levados. Anualmente tentamos em vão capturar a entidade que nos condenou a tanto tempo de sofrimento. Há 21 anos essa cidade não dorme em paz sabendo que nossas crianças correm perigo”, o sorriso do casal tinha desaparecido. “Meu pequeno Elliot será sempre lembrado e vingado enfim. Essa ficará na história da cidade como: O Tempo que Capturamos o Pai Noel.”
Uma risada escapou da minha boca, no que todos do lugar me repreenderam. Não sei que tipo de grande piada era aquela mas aparentemente todo esse mistério era pra capturar o Papai Noel. Um tipo de seita bizarra que se reúne anualmente para capturar o bom velhinho. Só podia ser algum tipo de trote com o novato. Vendo que ninguém mais ria, me contive.
“Com a tradicional sinalização de nossas casas e oferenda de nossos bens, prepararemos alimentos sob nossas árvores e ficaremos a espreita desse monstro cruel que nos levou nosso filho”. De todas as cidades do mundo, vim parar numa cidade povoada por malucos. Tentei olhar em volta para pegar algum sinal de que tudo não passava de uma grande brincadeira, mas todos olhavam com seriedade para a direção do Sr. Warrelly.
“Em nossa última tentativa, falhamos e aquele monstro levou o primogênito da família Garrick. Bennedic não aguentou a dor e se mudou. Felizmente, para não quebrarmos a tradição Eugene ofereceu sua casa e família para acomodar nossos preparos”. Peraí! Aí foi demais! Me levantei: “ Não ofereci nada! Não estou entendo o que está acontecendo aqui, agradeço muito o convite mas cansei dessa palhaçada. Fique vocês aí com sua loucura de caçar o Papai Noel que eu estou indo para minha casa descansar que amanhã trabalho cedo.”
“COMO OUSA…”, o Sr. Warrelly disse exaltado, “insinuar que isso é uma brincadeira? Há vinte e um anos atrás vi esse ser abominável entrar em minha casa e mata meu filho. Com sua barba suja e sua roupa etérea levar chaminé acima meu único e amado filho e deixar apenas o eco de sua risada maléfica. Há vinte e um anos armamos a cidade inteira para nos vingar desse… esse…”, lágrimas escorriam de seus olhos agora, o que me deixava cada vez mais assustado, “esse demônio e talvez reaver meu filho de volta. Nenhuma família vive tranquila nessa época do ano desde então”
“Quer saber de uma coisa? Que se foda isso tudo, vou embora e vou levar minha família junto. Cidade de malucos”. “É tarde demais, você já é um de nós”, novamente a Sra. Warrelly surgiu atrás de mim com seus dentes abertos e ameaçadores. Senti meus braços imobilizados pelo senhor que estava ao meu lado da mesa. Ele me colocou sentado em uma cadeira e toda a cidade estava em volta de mim repetindo coisas como “Ele vai voltar”, “ Você será o próximo”, “Não há lugar seguro”. Tentei alcançar meu celular mas estava sem sinal.
O Sr. Warrelly parou em minha frente, mais sombrio do que nunca e disse: “Você irá colaborar e não deve contar nada a sua esposa. Estaremos o observando todo o tempo. Você não irá fugir e não vai pedir socorro. Apenas montar sua decoração de acordo com nossos planos e recebê-lo em sua casa. Estaremos de prontidão para pegar o Pai Noel ou para eliminar sua família de vez.”
Eles me soltaram e eu saí correndo. Em menos de dez minutos eu estava na porta da minha casa, ofegante, tentando abrir a porta. Ana ouvindo o barulho veio abrir a porta pra mim. Ela de camisola e ainda meio dormindo “Você bebeu de novo?”, Mandei ela entrar com urgência e tranquei a porta. Fui correndo para o quarto do pequeno Hugo e o abracei. A Ana assustada perguntando o que tinha acontecido. “Eles são loucos, a cidade inteira. Precisamos sair daqui. Eles querem matar o Papai Noel e estão ameaçando nossa família pra isso”. Ela me olhava atônita, como se querendo rir mas assustada com meu desespero. “Está tarde, vamos dormir, amanhã a gente conversa sobre isso”, ela disse e foi deitar.


Parte 3


Passei a noite com meu filho no colo, sentado no chão do quarto e tentando me acalmar. Faltava uma semana para o Natal, ainda teria tempo para eu fugir dessa loucura. Ouvi a campainha, assustei e me peguei no meio de um cochilo. Fui olhar que horas eram e percebi que estava sem meu celular. Provavelmente o deixei cair durante a fuga. Coloquei o Hugo no berço e fui ver quem estava na porta, rezando para que a noite anterior tivesse sido apenas um sonho.
O casal Warrelly esperava sorridente que eu abrisse a porta. Como Ana ainda estava dormindo controlei meu escâdalo. “Saiam da minha casa agora, seus loucos! Vocês não são bem vindos. Vamos no mudar o quanto antes dessa cidade maluca!”. “Isso é forma de receber os vizinhos, Eugene?”, Ana disse descendo as escadas de nossa casa. “Entre Arthur e Marta, vou preparar um café”. Marta com aquele sorriso forçado de sempre: “Ana, me ensine esse truque para estar bela assim a esta hora da manhã! Viemos conversar com seu marido sobre as decorações de Natal. Aqui em Lord Duph nós levamos essa época do ano muito a sério!”. Marta foi com Ana para cozinha enquanto o Sr. Warrelly me puxou de lado para minha sala.
“Escute, moleque. Sua família já corre riscos. Estando aqui ou não. Você e seu filho é nossa chance de nos livrarmos de vez dessa aberração que nos assombra todo ano. Temos o controle da cidade. Você não vai conseguir sair ou pedir ajuda, então peço encarecidamente que nos apóie por bem”. Ele calmamente alcançou o telefone da sala e me entregou. A linha estava muda. Meu olho encheu de lágrimas. Eu vi o delegado da cidade, o responsável pela rodoviária, pelos telefones. Todos estavam naquela festa da insanidade a qual fiz parte ontem.
Calado, fui até a cozinha onde minha esposa preparava um café e conversava animadamente com a Sra. Warrelly. “Foi uma festa e tanto ontem, hein? Uma pena eu ter que ficar cuidando do Huguinho”, no que a Sra. Warrelly concordou. O Sr. Warrelly as interrompeu sorridente como sempre: “Vamos, Marta. Precisamos passar nas outras casas ainda. Eugene, deixei em sua mesa o que você deve fazer. Contaremos com sua compreensão de seguir tudo como combinado ontem. O grande dia está chegando! Tenham um bom dia!”
Levei os dois até a porta e contei a Ana tudo o que tinha acontecido. Ela riu. “Bem que a Marta falou que você tinha exagerado um pouco no vinho ontem. Você me assustou quando chegou em casa. O que de mal tem em eles opinarem um pouco sobre nossa decoração de Natal? E essa história toda do Papai Noel… me poupe das suas gracinhas. Vai ser um Natal lindo e toda a vizinhança vai estar unida e presente. Já é mais do que tivemos todos esses anos.”
Sem saber como convencê-la de uma história tão absurda, fui me arrumar para trabalhar. No caminho, estranhamente, todos me cumprimentavam. “Bom dia, Sr. Phillips”, bom dia. Passei a manhã inteira refletindo e às vezes, tudo o que eu precisava realmente era montar a decoração do jeito que eles queriam e quando passasse o Natal essa loucura toda iria embora.
Aproveitei também para pesquisar nos arquivos do jornal o que afinal tinha acontecido com a família Warrelly no Natal de vinte e um anos atrás. “Criança é encontrada morta na Noite de Natal” dizia a manchete. Como uma foto grande do Sr. e Sra. Warrelly desconsolados na capa, o casal contava na matéria sobre uma entidade que tinha invadido a casa durante a noite e assassinado a criança.
Nas edições seguintes, pouco se adicionou. A polícia encerrou o caso sem solução um ano depois, às vésperas do Natal. Não havia provas do que eles contavam. A criança não apresentava escoriações nem sinais aparentes que denunciavam a causa de sua morte. Na edição do dia seguinte, uma notícia sobre o 1º Jantar de Natal da Família Warrelly, em homenagem aos pais de Arthur e em memória da última noite feliz que tiveram antes da morte do jovem Elliot Warrelly. Uma grande reunião que juntou a cidade inteira na mansão Warrelly. “Você anda curioso demais, Eugene. Não estou gostando disso”, meu supervisor disse. “Volte ao seu trabalho”.
Saindo do trabalho pensei em ir a delegacia de polícia, mas a imagem do delegado na noite anterior se juntando ao coro da insanidade me fez recuar e voltar para casa. Ana veio me avisar que o telefone estava fora do ar mas que já tinha conversado com uma vizinha que trabalha na estação e que ela disse que em breve resolveria, culpando a neve pela confusão. Aproveitei o momento para contar a ela com calma tudo o que tinha acontecido e o que tinha descoberto no jornal aquela manhâ.
“Você está dizendo que o filho deles amanheceu morto, eles culpam o Papai Noel e desde então todo ano eles fazem uma espécia de caça pra aprisionar ele?”, sim. Era basicamente isso. “E que eles me ameaçaram e ameaçaram nosso filho para que você entre no joguinho deles?”, exatamente. “Então vamos sair daqui imediatamente”. “Não tem como. Não temos carro e não conseguimos pedir ajuda. A cidade inteira está sob o controle deles só nos resta jogar o jogo.”
Eu e Ana pegamos os planos deixados pelo Sr. Warrelly e começamos a montar nossa casa de acordo com o que nos foi pedido. Algumas luzes estrategicamente colocadas, uma árvore maior. Tudo o que precisávamos um vizinho prontamente nos oferecia. Em dois dias a casa estava de acordo com o que eles pediram.
“Até que deu um pouco de vida a casa, não?” Ana disse enquanto Hugo brincava com as luzinas na árvore de Natal. “Só nos resta esperar o Natal passar agora para podermos sair dessa cidade e nunca mais voltar”.
No dia seguinte, a Sra. Warrelly nos trouxe uma torta de maçã como agradecimento a nossa colaboração para fazer o Natal de Lord Duph especial. Eu preferi não comer mas a Ana e o pequeno Hugo comeram por mim.


Parte 4


Os dias que antecederam o Natal foram mais tranquilos que esperávamos. Com a ameaça a nossa família um pouco esquecida e agora com nossos vizinhos nos tratando super bem, vivemos dias felizes eu, Ana e Hugo. Mesmo sem acreditar no Natal Cristão, entramos no clima e até pensamos em trocar presentes entre a gente. Comprei um par de brincos pra Ana e um mordedor para o Hugo e até ganhei desconto da dona da vendinha.
A véspera de Natal acordou silenciosa. A neve forte deixou todos em casa. Meu coração batia forte em um misto de nervosismo e ansiedade para o que afinal iria acontecer durante a noite. Ana continuava tranquila, incrédula de tudo o que aconteceu no início da semana e achando que tudo não passava de uma grande conspiração de minha cabeça visto a tranquilidade com que todos estavam ultimamente.
O dia caminhava para uma feliz decepção ante sua calmaria quando ouvi batidas fortes na porta. Fui atender e era o Sr. Warrelly enfrentando vento e neve fortes. Deixe-o entrar. “Bom dia, Sr. Phillips.”, disse sorrindo. “Só vim garantir que tudo está pronto para hoje a noite”. A decoração estava como foi pedida, a árvore também. Perto da meia-noite deveríamos colocar biscoitos e um copo de leite próximo a árvore, ir para o quarto e não sair em hipótese alguma. Eu e Ana tínhamos combinado de que íamos apenas fazer o que foi pedido e dormir para não criar mais confusão na vizinhança. Nos despedimos do Sr. Warrelly e o acompanhamos até a porta.
Nos mudaríamos assim que essa loucura passasse. Provavelmente para a cidade natal da Ana. Independente do que acontecesse durante a noite. A pequena cidade não era bem o que a gente esperava, mas foi um erro menor que logo seria superado. Mantendo nossas cabeças longe das possibilidades daquela noite, mal vimos o dia passar. Ana adorou o brinco e me deu um livro de um escritor que eu adorava. Hugo adorou o mordedor, pelo menos é o que aparentava enquanto mordia o objeto.
A noite chegou e meu coração batia forte. Tentei não aparentar meu nervosismo enquanto colocava Ana e o Hugo para dormir. O terror que me passaram naquela reunião ainda não tinha sido superado, mas nada indicava que de fato algo aconteceria aquela noite. Com a ajuda de uma taça de vinho, Ana logo dormiu tendo o bebê em seu colo. Ajeitei os dois na cama e fiquei a espreita.
O relógio apontava pouco para a meia noite e eu não via movimentação em nenhuma das casas da vizinhança. Alguma coisa ia acontecer. Alguma coisa tinha que acontecer pra justificar todo o terror que me foi feito. Um minuto para meia noite.
As luzes da decoração lá fora pararam de piscar. Estavam totalmente acesas. O mesmo acontecia nas casas vizinhas. Deitei atrás da Ana tentando proteger os dois do que quer que fosse. Deixei meu peito um pouco afastado para que o batimento do meu coração não os acordassem. As luzes se sincronizaram na rua. Elas acendiam e apagavam juntas, alterando clarão e escuridão no bairro. Dentro das casas nenhuma luz acesa.
Tentava observar pelas janelas da casa o que meus vizinhos estava fazendo. Nenhuma sombra, nenhum movimento. O pânico começou a tomar conta de mim. Precisava proteger minha família do Papai Noel. Soava ridículo até no pensamento. Fechei meus olhos pra tentar dormir. Fiquei tentando lembrar de como eram os Natais da minha infância.
Lembrei de impedir meu pai, bêbado de atacar meus irmãos. Lembrei de ganhar o carrinho que tanto queria para depois ser tomado de mim por eu não ser um bom menino. Tudo era uma grande lição na cabeça dos meus pais. Ano após ano o Natal se superava em traumas. Quando tive a oportunidade de sair de casa prometi que não iria mais dar importância para essa data.
Cidade maldita. Encheu minha cabeça de medos e meu coração de preocupações. Medo de algo que, racionalmente, não existia. Sentimento profundo de proteção que não me deixava dormir e expor minha esposa e meu filho a algo.
Ouvi uns gritos na casa vizinha. Olhei na janela e pensei ter visto um vulto vermelho passando rápido. Meus olhos provavelmente me engavam. Minha cabeça estava imaginando coisas. Trouxe Ana e o Hugo para perto, como se meus braços fossem impedir qualquer coisa de acontecer. Ouvi mais gritos nas casas vizinhas. As luzes de Natal pararam de piscar. A rua se resumia a escuridão agora. O vento batia forte na janela fechada. Um pequeno uivo invadia uma fresta da parede. Repetia para mim que era apenas minha imaginação. Mais gritos. Comecei a chorar, sem entender direito o porquê. Não queria perder minha família. Não queria abrir mão de tudo que construí. Fechei a cortina. Os dois dormiam como anjos.
Ouvi um barulho na cozinha. Provavelmente o vento, mas eu tinha que checar. Tentei buscar algo com que eu pudesse me proteger em vão. Desci as escadas com as pernas tremendo, deixando o medo tomar conta de mim. Passava mentalmente todas as ordens dadas pelo Sr. Warrelly para entender o que tinha acontecido. O pouco de luz da lua refletida na neve lá fora iluminava meus passos. Achei um pedaço de madeira e carreguei-o em posição ofensiva, por mais que eu tinha certeza de que eu teria pouco a fazer caso precisasse.
A casa estava sem energia, por mais que a sala continuasse iluminada pela decoração de Natal. A cozinha estava vazia. Peguei uma das facas de carne, mais para sensação de segurança do que qualquer outra coisa. Uma batida forte na porta. Meu coração parou por meio segundo. “Eugene, abra, por favor!”, era a voz da Sra. Warrelly, soando bem desesperada. Abri a porta e a deixei entrar. “O que você fez, Eugene? O que você fez?”, sem saber como reagir, olhava pro lado tentando achar o que deu errado. “A oferenda, Eugene. Onde está a oferenda?”, ela gritava.
Os biscoitos e o leite. Na distração do dia, esquecemos de colocar os malditos biscoitos e leite no pé da árvore. As luzes que vinham da árvore também apagaram. Ouvi um grito no andar de cima. No que provavelmente foi o movimento mais rápido da minha vida, abri a porta do quarto onde Ana e Hugo dormiam. Meu coração pulsava em minha garganta. Eles estavam lá, seguros e calmos como estavam antes. Fechei a porta e tentei me acalmar para entender o que estava acontecendo.
“Arthur, não!”, a voz da Sra. Warrelly veio da sala. Desci correndo e me deparei com o Sr. Warrelly em uma imensa capa vermelha, um cheiro forte de gasolina e um isqueiro na mão. “Eles não entendem, Marta. Eles zombam da nossa dor. Eles precisam sentir o que a gente sentiu ou aprender a respeitar quem somos”. Com a tora de madeira em uma mão e pronto para sacar a faca com a outra eu observava a Sra. Warrelly em prantos tentando impedir seu marido de cometer uma loucura.
“Sr. Warrelly, o que você está fazendo? Se acalme!”, tentei em vão gritar. “Custava ter colocado a oferenda, Eugene? Vocês são bons demais para se unir a nossas tradições? A cidade grande não te ensinou a se enturmar? Você vai se juntar a nós ou nos ajudar a reforçar a lenda. Você escolhe”. “Eugene o que está acontecendo?”, Ana estava no topo da escada com o pequeno Hugo nos braços. “Volta pro quarto, Ana! Por favor! O Sr. Warrelly está louco!”
“Venha ver o deboche de seu marido, Ana. Junte-se a nós e pague o preço de rir de nossas tradições”. Ele finalmente soltou o isqueiro no chão e o fogo se espalhou rapidamente por todo o primeiro andar. O casal Warrelly correu em direção a porta, mas a grande capa vermelha estava em chamas agora.
Peguei o pequeno Hugo no colo, tentando cobrir sua boca com minha roupa, corri para o lado de fora. A Sra. Warrelly me derrubou, por sorte consegui proteger o Hugo. O Sr. Warrelly ainda tentava se livrar de sua capa em chamas quando Ana acertou sua cabeça com o ferro de passar roupas. Enquanto a Sra Warrelly socorria seu marido, eu, Ana e Hugo fugíamos da casa e víamos as chamas se espalhando. Gritávamos por socorro mas ninguém da região parecia nos ouvir.
Coloquei o Hugo perto do meu peito e tentei ao máximo protegê-lo do frio. Ana continuava gritando e batendo nas portas dos vizinhos em busca de alguém para nos acolher e nos explicar o que tinha acontecido. Em 40 minutos de caminhada, conseguimos chegar a estrada e um viajante nos acolheu. Contamos nossa história para ele, que não nos levou muito a sério mas “Ninguém deveria passar o Natal sozinho”.
Ele nos deixou na rodoviária da cidade seguinte, onde conseguimos ligar para os pais da Ana que vieram nos buscar. Tentamos em vão denunciar o casal Warrelly nas polícias locais, mas todos diziam que era melhor não mexer com as pessoas de Lord Duph.
Nos dias seguintes, quando mandamos uma empresa buscar o que quer que tenha restado de nossa casa, ficamos sabendo que o Sr. Warrelly foi consagrado como herói da cidade por sua tentativa, em vão, de salvar a família Phillips. Estaremos sempre na memória daqueles cidadãos de bem, apesar do pouco tempo que vivemos lá. Velas foram acesas em nossa porta e dizem que teremos um memorial na praça onde nosso nome estará com o de outras vítimas.
Nunca saberei o que de fato aconteceu há vinte e um anos atrás que levou a sanidade do Sr. Warrelly. Sua influência dentro da cidade, seja por medo ou por respeito, impede que um dia descubram realmente. Sei que o Eugene que se mudou praquela cidade há menos de um mês, não existe mais. Ana voltou a ter surtos e o Hugo não dorme tranquilamente uma noite sequer. Os calmantes não fazem mais efeito. A família da Ana acha que estamos fugindo de algo e que inventamos toda a história. Mais uma vez.
Eu mesmo não tenho muita certeza sobre o que aconteceu. Conto o que consigo lembrar da forma que acho que aconteceu. Meu psicólogo diz que muitas lembranças minhas são projeções de frustrações passadas. Procurei mais informações sobre a cidade e não encontrei nada. Lord Duph não está nos mapas. Seu nome não está nos registros. Não sei se quero mais respostas também.


O Natal ganhou outro significado pra mim, algo que eu não quero mais lembrar ou comemorar, assim como foi na minha infância. Me esforçarei ao máximo para que essa data nunca mais se repita.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Apocalipse Nau.

Vejo, ao longe, capitães dedicados 
afundando por uma covarde tripulação.

Deveriam jogar esses marujos amaldiçoados
Ao mar para virarem comida de tubarão.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Passarinhos.

Quando eu era pequeno caçava passarinho. Me sentia o próprio Indiana Jones com meu estilingue. Imagine minha decepção quando descobri que o próprio Indy, explorador e paleontólogo, não caçava nada. Mas eu me enfiava no mato sem dó, saia todo arranhado atrás do passarinho perfeito, mirava a pedrinha já prevendo o curso do passarinho durante a fuga. Tinha nascido praquilo. No momento que eu o acertava e ele caia indefeso no chão de folhas, batia a culpa. Por que eu tinha atingido aquele bichinho tão bonito? A família dele ia ficar preocupada, isso se não brigasse com ele por ter arranjado confusão lá fora. Não era culpa dele, Dona Passarinha, eu que acertei ele enquanto ele tava distraído! Vendo os olhinhos tristes, eu o levava pra casa pra cuidar. Colocava água e um pouco de farinha e milho pra ele comer. Minha mãe brigava comigo por estar machucando os animaizinhos de novo, mas depois ria da minha dedicação em fazer o bichinho voltar a voar. Teve uma época que eu escrevia cartas e colocava nas árvores pra poder tranquilizar a família dos passarinhos. Explicava que ele passava bem e estava sob cuidados de um especialista (eu), que em breve ele retornava pra casa. Geralmente em um ou dois dias no máximo, o passarinho já estava em condições e eu levava ele de volta pro bosque perto da minha casa. Meu pai não deixava eu colocar nome nos passarinhos, com medo de eu me apegar, mas eu era forte. Sempre me despedia e pedia desculpas pelos transtornos causados.  Fazia ele me prometer que ia voltar pra eu ver como estava o machucado e então o observava ir embora.

No segundo ou terceiro dia, quando eu percebia que ele não ia voltar, eu pegava meu estilingue novamente e ia atrás de outro paciente.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Oitavo andar.


Quem são essas pessoas que se interessam tanto assim por minha vida a ponto de acompanhar cada passo que eu dou? Que necessidade de validação é essa na satisfação pra cada comentário sobre assunto banal. O próprio sistema escolhe quem serão as pessoas que vou lembrar e quem são aquelas que aos poucos vão desaparecer da minha memória. Todos estão lá na mesma prateleira, mas o algorítimo escolhe quem é relevante para minha vida ou não. Onde estão as pessoas fora da prateleira? Ninguém atende mais o telefone, como vou saber se você está bem? Me visite, sem avisar mesmo. Perca cinco minutos no supermercado para poder saber da minha vida. Sua caixa de correio está cheia de pequenos lembretes sobre pessoas que você não importa, onde estão as pessoas importantes? Como vai você? Como vai sua família? Me liga! Qual é mesmo seu telefone? Vou ligar. O telefone toca até cair. Ah, não. Ele de novo? Mas foi tão cedo. Ninguém esperava. Vou ligar da próxima vez. Toca de novo, caixa de mensagens. O que aconteceu? Ele não me atende, não me retorna. Você sumiu! Estou sempre por ai, acho que você não procurou muito bem. Vamos tomar um chopp! Não, não bebo. Você saberia caso… não importa. Trocou de namorada? Tem mais de um ano que estamos juntos. Deixa pra lá. As pessoas mudam, os ciclos viram, quem é de verdade sabe quem é também. Parece que nunca nos separamos, né? O tempo passou rápido demais. Olha, curtiram minha foto! Quem será essa pessoa? O que você significa para as pessoas que você não conhece? Ele me falou que te odeia, você não o conhece? Estranho. Ele te adora! Achei que vocês fossem amigos. Outra validação pessoal por um desconhecido, isso faz bem pro ego. Deveríamos nos elogiar mais, sem malícia e intenções, elogio puro e simples. Você está bonito, cara. Parece feliz. Só por fora, é verdade. Por dentro está uma bagunça. Troca a roupa, troca o cabelo, troca as músicas e as pessoas. Nada resolve. O denominador comum disso tudo é você mesmo. Seja a mudança que você quer ver nas outras pessoas. Dê bom dia e aprenda nomes. É um primeiro passo já.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O peão.

Fui como peão na linha de frente
Crente que atrás tinha uma rainha para salvar
Ah, como eu pude ser tão inocente?
Ela era forte e independente, não precisava de mim para ganhar.

Morri como tolo que fui a vida toda
Achei que era muito mais do que realmente sou
Não foi preciso bispo pra me mandar pra fora
Foi apenas outro peão que me derrubou

Vi meu reino vitorioso, mas assisti de longe
Tentei me orgulhar, mas não sabia por onde
Começar.
Todos comemoravam sob o sorriso da Rainha
A vitória era de cada um, mas ela nunca seria minha.

Derrotado, como o inimigo, me escondi o quanto pude
Observei de longe, envergonhado de minha atitude
Voltei ao reino depois de muita espera
Pobre de mim, a Rainha nem sabia quem eu era.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Herdeiro.


Dizem que estou louco, mas mais louco está quem acha que observarei minhas terras serem invadidas por bárbaros estrangeiros! O que meu pai diria? Pelo menos nosso povo nunca duvidaria de suas decisões. Malditos ingratos! Dediquei minha vida a eles. Enquanto meu pai ocupava o trono com mãos de ferro, era o meu pescoço que estava sendo arriscado na frente de nossos soldados.
Meu batalhão me seguiria até os portões do inferno, mas hoje olho para meu exército e só vejo gordos, preguiçosos, aproveitando o almoço fácil dos campos de treinamento. Meus irmãos, meus cavaleiros, morreram para que um bando de imprestáveis pudessem reclamar de meu governo.
Minha esposa vira o rosto quando passo, passa verões na nossa casa de campo e invernos na casa de seus pais. Levou meu primogênito com a desculpa da erudição, me impedindo de ensiná-lo a arte de se empunhar uma espada.
Sou um velho abandonado em um castelo de inúteis. Desconfio que metade dos cozinheiros já não trabalham mais aqui. Meu serviçal de confiança, meu braço direito, anda me escondendo coisas. Percebo as movimentações e as palavras miúdas pelos corredores onde passo. Nem meus cães me respeitam mais.
E ainda assim, toda manhã, desembainho minha espada para treinar sozinho. Do frio da manhã até o ponto do sol mais alto no céu. Vez ou outra um jovem soldado junta-se a mim, desconfio que por dó ou por ordens de seus superiores. 
Me tornei o velho que todos riem quando vira as costas. Me lembro do velho ermitão que surgia no reino quando eu era menor, cheirando urina e carregando velhas panelas. Nós jogávamos maçãs podres e corríamos, ele as comia com seus dentes podres. Não me jogam maçãs ainda, mas não demorará e o desrespeito deixará de ser velado.
Bando de ratazanas! Maldito meu ancestral que colonizou essas terras e a deixou própria para o plantio. Que esses parasitas morram da febre negra! Sinto falta das palavras duras do meu pai. Ele teria cortado a cabeça de um e os outros teriam aprendido a lição. 
Maldito coração que me fez me apaixonar por uma donzela que amava a outro. Nem todo o ouro do mundo compra o coração de uma mulher. Tenho seu primogênito mas não tenho sua atenção. Desconto minhas noites frias nas pobres criadas do reino. Quando ouço o choro quase silencioso do pós-coito, mando-as de volta a seus aposentos e tento me aproveitar ao máximo o cansaço momentâneo do meu corpo para conseguir dormir.
Velho, louco e cansado. Todos esperam para que eu durma de uma vez por todas o sono eterno enfim. E cada vez mais espero também. Me juntar a meus últimos aliados, se é que meu sangue, mesmo que derramado fora de batalha, ainda valha alguma coisa. Ó, Senhor das Guerras, por que não me proveras de uma morte honrosa? Por que me deixastes idoso, senil e desconfiado? 
Cada desjejum é a esperança de que algum criado tenha finalmente criado coragem para me envenenar de vez. Covardes! Nem para tramar minha morte esses infelizes conseguem. 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A volta do Gram.

Sobre uma banda que me fez mudar mas depois mudou de mim.

Quem me conhece há tempo sabe que sou um cara de poucas bandas. Daqueles chatos que gostam demais de cinco bandas e não se dá ao trabalho de conhecer outras coisas. Em minha defesa, eu escuto as outras coisas, só que nada me prende a atenção mais.
Gram foi uma das bandas que marcaram minha vida. Pontuando a transição entre o “rock comercial” para o “rock independente”, Gram foi o responsável não só por me abrir as portas de um mercado nacional de música de qualidade, como também foi quem em fez começar a valorizar tanto o uso da nossa língua nas músicas. É uma língua difícil, mas quem a domina deixa tudo mais bonito.
Era um Go Music em 2005, um dos primeiros grandes shows de rock que fui na vida, e o palco independente daquele dia em específico moldou meu gosto musical por muito tempo. Ludov, Cachorro Grande, Matanza e Gram se apresentaram. Todos restritos a pequenez do palco secundário do festival, mas que cresceram absurdamente em minha vida a partir dali.



Gram foi a maior surpresa. Um rock bom de se ouvir, que se valia do velho clichê da falta de rótulo. Os comparavam muito com o Los Hermanos, mais pela escolha de se cantar em português e não soar como um Pop Rock grudento do que por ter alguma semelhança realmente.
As músicas falavam de amor. Um amor que traduziu sentimentos confusos de um Toscano adolescente por alguns anos. É estranho quando alguma música parece ter sido feita para você especificamente. Mais estranho ainda quando você percebe que muita gente se sente da mesma forma que você sobre as mesmas músicas.
Quando veio o anúncio de um segundo CD, bateu aquela insegurança de eles não conseguirem superar essa expectativa. “Será que essa banda vai continuar falando sobre o que eu sinto, mesmo o que eu sinto hoje seja algo tão diferente do que eu sentia quando os conheci?”. E acertaram perfeitamente. As músicas agora falavam de um amor mais maduro, que aceita suas falhas e pede perdão. Falava de conviver com os erros, de aceitar e de amar acima de tudo, mesmo quando não se está mais do lado de quem se ama. Falava de outros tipos de amores.



Foi quando veio a notícia. Por motivos pessoais, Sérgio Filho, o vocalista e principal compositor, sairia da banda. Os shows já não se vendiam mais e o desgaste não era recompensado. Foi quando aprendi a comprar o que eu gosto. Cds, dvds, camisetas. Baixar MP3 não sustenta seu artista preferido. Aprendi da pior maneira.
Entrei em um limbo musical, onde nada mais conversava comigo. Conhecia novas bandas, me interessava por uma ou outra música, mas logo o interesse passava. Boatos sobre uma possível volta, sobre outro vocalista entrar no lugar, tudo muito vago e distante. Fui voltar a consumir música anos depois quando conheci Fresno e Brand New em seqüência.
Então, há poucos meses, vem a notícia de que Gram voltaria. Com contrato com a Sony, estavam prontos para retornar. Sem grandes confirmações ficou a dúvida: será que o Sérgio voltaria? Minhas habilidades de stalker me levaram a dura realidade. Ele não queria mais mexer com isso. Sete anos depois e o sentimento dele ainda era o mesmo. Sua carreira como ilustrador e designer ia muito bem, a música não cabia mais em sua vida profissional.
Entre as pequenas informações soltas, Gram anunciou seu novo vocalista. O manifesto que o defendia era bem convincente. Afirmava que eles não voltariam caso não acreditassem na capacidade do novo sujeito de honrar e continuar o legado da banda. E o ponto principal: sete anos depois, os integrantes também não eram as mesmas pessoas.
Que diabos, eu também não sou a mesma pessoa! Nada me garante que o Sérgio, caso voltasse, supriria minhas expectativa de falar sobre a MINHA vida da maneira que ele falou, por acaso, anteriormente.
Então tem essa banda. O diferencial dela? Carrega o nome e legado de uma banda que foi muito importante na minha vida. Isso já é suficiente para que eu os dê uma chance. Fato raro em minha vida.



Ainda não sei o que pensar sobre essa música nova. Quero ouvir o cd inteiro antes de dar minha opinião sobre a volta da banda. É melhor do que muita coisa que está aí, mas preciso de mais do que isso. O instrumental é Gram, sem dúvida. A guitarra do Marco Loschiavo é muito característica. Sinto falta dos vocais do Sérgio Filho, com certeza. Mas o trabalho dele está aí disponível pra mim sempre que precisar.
Fico feliz por ver eles ainda produzindo, fazendo uma música que (tenta ao menos) fale mais do que sobre sentimentos superficiais. Talvez eu não os acompanhe muito daqui pra frente, mas eles tem todo meu apoio para continuar. E quando eu puder em algum show, eu irei sem dúvida. E vou gritar ao máximo as músicas que amei, com ou sem Sérgio Filho no vocal. Quem sabe até tietar pra tentar pegar outra palheta e guardar como recordação de um momento que não volta mais em minha vida, nem se eles quisessem.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Branco.


Ele acordou numa sala branca. Todos já conhecem o contexto. Não lembrava como tinha chegado ali e a porta em sua frente estava trancada. Gastou as primeiras duas horas tentando abrir a porta, chegou a tentar arrombá-la, mas eventualmente desistiu. Começou a repensar o que ele teria feito para alguém o prender daquela maneira. Vivera de maneira patética até então, sem grandes impactos na vida dos outros. Talvez aquela ex-namorada o qual nunca teve coragem de encontrá-la depois do término. Nem para avisá-la que tinham terminado. Ela com certeza teria motivos para prendê-lo. O pai dela tinha alguma relação com militares, mas ele não conseguia se lembrar exatamente qual. Apesar que ela era um doce de pessoa, não faria mal a ninguém. Um colega de trabalho, talvez? Ele tinha crescido relativamente rápido dentro da empresa, poderia ter causado inveja de alguém. A quem ele queria enganar? Ninguém se importava com o cargo que ele ocupava. E, na verdade, só tinha chegado até ali por uma coincidência de fatores de pessoas deixando suas vagas para ir para lugares melhores e não ter ninguém mais adequado para substituí-las. Ele sempre desconfiara que o senhor dono da banca de revistas o olhava torto. Talvez pela maneira como ele pedia o jornal, podia soar arrogante. Ele não tinha muitos amigos, quanto menos inimigos. Não era alguém que se destacava muito.  A luz sempre ligada e a falta de janelas não o deixava saber quanto tempo estava ali pensando sobre tudo.

Ele começou a ouvir um barulho de conversa através da porta. barulho de fechadura. A luz apagou, um barulho como se um gás fosse liberado na sala. A porta abriu, e pelo contraste da luz lá fora e o gás, duas pessoas disformes e mascaradas. Sua visão já turva, suas pernas enfraqueceram. Só conseguiu ouvir ao longe "Como vocês me pegam o cara errado…".

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Tantas palavras no mundo.

Amiga, deixa de bobagem.
O tempo passa e faz milagre.
E porque não aproveitar a oportunidade
E fazer disso uma ascensão?

Se a felicidade é intrínseca a criatividade
Lembre que é a tristeza que verdadeira traz inspiração.

Pega a caneta e, já dizia o poeta, bota o coração em palavras
Que quando menos se espera, depois de uma estrofe incerta,

O seu sofrimento também acaba.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Aurora.

"Nem todo pôr do sol tem um amanhecer a altura"
Mas olho pra ela e ela jura que nunca viu algo assim
Mas eu sei que muitos sóis já se poram naquele horizonte

Mas qualquer caminho que eu piso é caminho pisado
Não existe porta que ninguém tenha passado
E mesmo tendo passado a noite inteira ao seu lado

A aurora perde a cor a medida que o sol se firma.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Trilhos.


Nunca achei que essa viagem ia me fazer tão bem. Sair um pouco de casa, do meu país na verdade, me deu uma perspectiva muito diferente. Sair do conforto de casa e, principalmente, me distanciar daquilo que me fez tão mal nos últimos anos, me fez um bem enorme. Não era pra ter terminado como foi, a gente tinha um futuro planejado pra terminar velhinhos e felizes em uma cidade qualquer no interior mas agora estou aqui, sozinho em um trem velho, vendo as paisagens de um lugar onde eu nunca quis estar.
A França é muito mais fria do que eu pensava. Além das várias camadas de roupas, não consegui fazer muitos amigos por aqui. Sempre sou muito bem recebido, mas estranho essa distância natural entre desconhecidos, lá no Brasil tudo era mais próximo. O sorriso, o abraço, o beijo no rosto, as tardes na praia vendo o Sol se pôr, você, o cobertor.
Ando sozinho há dois meses, difícil aprender todas as línguas que esse lugar fala. Meu pouco inglês é o suficiente para não morrer de fome e ter onde dormir, mas ninguém está muito interessado em falar outra língua que não a própria. Me lembram demais dos nossos últimos dias, quando você se recusava a me entender.
Como foi que a gente chegou aqui? Como foi que eu cheguei aqui? Não consigo dormir com o balanço do trem. Fico olhando as paisagens, parece que tudo foi estrategicamente montado para um set de cinema. Cada árvore, cada lodo na parede das casas antigas, cada habitante é um figurante de luxo de um filme que você não queria ver.
A vida dá voltas demais. Você nunca soube da lua de mel que eu planejei pra gente. Nunca pude fazer o pedido de casamento dos sonhos, que deixaria todos do restaurante emocionados e com inveja. Você nunca conheceu nossos filhos, que eu sonhava em levar para o parque e ensinar a jogar bola. Você nunca conheceu nossa casa de campo. E nem eu, na verdade.
Minhas economias que eu tinha guardado para te dar paz e conforto, viraram essa viagem. Além do dinheiro, foi meu carro, meu emprego, minha coleção de livros, minha paz de espírito e meus sonhos. A viagem mais cara que eu alguém já fez.
Para dormir, me embebedo no hall de hotéis baratos, conversando com o barram, muito bem pago para me ouvir. Mas não falo de você. Invento histórias que escondem minhas frustrações em estar ali. Ainda espero a tecnologia que apagaria nossa memória e colocaria outras no lugar. O homem já chegou na lua e ainda não entendeu o cérebro humano.
Queria um manual de instruções, pra entender o que fez você abrir mão de tudo o que a gente tinha. Onde eu falhei ao me entregar por completo para você. Em não ouvir meus pais, meus amigos, você.
Você sempre soube que não funcionaria. Me deu várias dicas durante nossos cinco anos de relacionamento, mas eu era bobo, jovem. Não queria ver, queria que a gente vivesse os contos de fadas, as comédias românticas. Logo eu, que nunca acreditei no amor, mas você me convenceu, mesmo sem querer, que com a gente funcionaria. Que o sapatinho de cristal se moldaria no pé de quem acreditasse. E me percebi de repente o cocheiro te levando para um baile. E ainda assim fiquei e insisti e vi você perceber-se princesa e ir embora.
Fugi sim dos meus problemas. Com a consciência tranqüila dos covardes que estão cansados demais para lutar. Deixei minha dor pra trás e vim buscar conforto no desconhecido.

"Com licença, esse lugar está ocupado?"
Meu coração? Sim, ele está cheio de dor e rancor. Mas a poltrona em minha frente está disponível sim, fique a vontade. O inglês arranhado dela, denunciava que também não era daqui. O chaveiro do Rio de Janeiro na mochila denunciava que ela já esteve no Brasil. Arrisquei e perguntei se ela falava português.
"Meu Deus! Não acredito? Você é brasileiro? Estou muito perdida aqui, cheguei ontem e descobri que todo o esquema de hospedagem que eu tinha reservado era furada. Gastei muito dinheiro do meu pai e não posso contar pra ele, entrei no primeiro trem que saiu da estação que eu estava."
Tinha tanto tempo que eu não conversava com alguém que quase fiquei sem ar. Ela parecia jovem, simpática e estava perdida na Europa. Um pouco como eu. Ouvi ela contando sobre como tinha planejado sua viagem por meses e chegando no endereço da pensão que ela ficaria enquanto estudava, não havia pensão, não havia a Escola de Artes que ela havia pagado a mensalidade, não havia nada. E como ela decidira fingir que tudo estava bem para seus pais até ela voltar para o Brasil.
Não inventei história dessa vez, mas também não falei muito. Sabia que eu não estava muito longe da minha parada e não queria criar muitos laços. Falei palavras de conforto sobre como ela conseguiria sobreviver tranqüilamente esses meses na Europa e que o melhor a se fazer era ser franca com seus pais.

O trem finalmente chegou na próxima estação. Me despedi educadamente, recolhi minhas coisas e caminhei para a saída. Quando coloquei minha mala no chão, percebi que passei a última meia hora sem lembrar dela, do mal que ela me fez, do que eu deixei para trás. Foi a primeira vez desde que cheguei aqui e talvez o maior tempo sem pensar nela dos últimos seis anos. Peguei minha mala e voltei para a cabine que eu estava. Não sei para onde essa viagem vai me levar, mas que pelo menos eu não vou fazê-la mais sozinho.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Caleidoscópio 2.

Meu corpo escorrega na poça, sem saber que pode
se levantar mais uma vez. Sinto na tez a lágrima, a última,
Que mais uma vez torna turva a luz de fora.
Vejo que nada mudou, o espelho, despedaçado agora
Ainda reflete a áurea de cada pedaço meu.
E minha é a culpa, de quem mais seria?
A caleidoscopia nada mais é que a confusão da visão
Com a forma que as coisas são. Não queria pra mim a dor
Mas todo o topor mais uma vez me atinge e me joga no chão.
Sinto, com esforço, o último rangir de ossos, fecho os olhos e vou.

domingo, 9 de março de 2014

O Menino.



Lembro da primeira vez que eu segurei uma pistola. Minha mão infante e trêmule mirando um conjunto de garrafas a uns 40 metros. Meu pai via as lágrimas escorrendo do meu rosto e não expressava a mínima compaixão. A vida era assim e eu já estava passando da idade de aprender a empunhar uma arma.
Eu não era do tipo que dava orgulho para o pai. Não era muito habilidoso no campo nem muito inteligente. Falhava em tarefas básicas e o doutor falou que eu não passaria dos dez anos. Na época eu me sentia muito mal com isso tudo. A cara de decepção do meu pai me doía, e os abraços de consolo da minha mãe me doíam mais ainda. Ele me dizia que o mundo lá fora era perigoso, que ele tinha passado coisas horríveis no Álamo e que ia me transformar no homem que o pai dele o transformara. Então desde o meu oitavo aniversário ele me fazia treinar com a pistola diariamente, mirando em latas velhas de conserva.
Lembro também de me esconder embaixo das tabuletas enquanto um grupo rival invadia minha casa. Minha mãe chorava em desespero e meu pai oferecia o próprio peito para que nos poupassem. Eu chorava silenciosamente, obedecendo as ordens do meu pai de não denunciar minha posição, enquanto ouvia os tiros e em seguida o cavalgar se afastando. Saí do meu esconderijo para encontrar meus pais dormindo em uma poça de sangue. Acho que era isto que meu pai tentava me preparar.
Por dois dias seguidos eu chorei enquanto observava o corpo deles sem vida. No terceiro dia, eu os enterrei junto com seus pertences como me fora ensinado. No pasto, um potro manco e magro me observava, como se esperasse que eu o alimentasse. Isso me lembrou que há dias eu não comia também. Peguei um pedaço da carne salgada ao sol e dividi entre mim e ele.
Fiquei na casa enquanto ela me aceitou. Os recursos foram se esgotando enquanto eu treinava ao lado do meu novo amigo. Eu iria ser tudo que meu pai esperava de mim. Por dois invernos eu encarei o túmulo dos meus pais enquanto me tornava o melhor atirador que eu pudesse.
No começo da terceira primavera, meu corpo já crescido um pouco e meu cavalo já rápido como bala, juntei algumas roupas e fui até a cidade mais próxima procurar munição e um trabalho.
Desensinado do mundo, mas muito disposto a aprender, limpava o chão de um bordel da região. Ganhava algumas moedas, mas a maior parte do pagamento vinha em serviços do local. Lá eu aprendi a ler, escrever e a amar com as prostitutas mais disputadas da cidade. Fui adotado por grandes figurões da cidade, como o prefeito e o xerife que se divertiam com meu silêncio e minha falta de passado. Acumulava minhas moedas no fundo de um baú na despensa que me servia de quarto.
Um certo dia, um senhor chegou a cidade ordenando as melhores putas da região. Entrou no bordel e foi tratado como um rei, todos já o conhecia,. Parecia alguém importante, dessas pessoas que transpiram respeito. Enquanto se entupia de rum, mandou me chamar. Eu, com muito mais porte agora do que quando cheguei, fui humildemente.
“Seu rosto me lembra muito alguém muito importante pra mim. Por acaso você conhece alguém que lutou no Álamo?”
“M-meu pai, senhor”.
“Seu pai, meu jovem, pode ser o homem que salvou minha vida. Por onde ele anda?”
“Morto, senhor. Assassinado.”
“Sinto muito em ouvir isso.”
Eu mal conseguia encará-lo nos olhos, não pensava em meu pai desde que deixei tudo para trás.
“Se for do seu interesse, você pode se juntar a mim e conhecer várias cidades e pessoas. Quem sabe em algum desses lugares você conforte seu coração e eu pague minha dívida com ele. Ajeite suas coisas que pela manhã compraremos um cavalo para você e saíremos da cidade.”
“S-senhor, eu já tenho montaria.”
“Esse menino é um achado!”
Durante toda a noite, ele se divertiu ao lado das moças do bordel. Pela manhã, elas me prepararam um café da manhã de despedida e me deram um chapéu. Olhei para cada uma delas, ajeitei minhas coisas no Faísca e percebi que agora eu estava pronto para me tornar um homem. Meu pai deu seu jeito.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

O Bando.



Eu deixava ela cavalgar na minha frente. Até meu cavalo sabia que era melhor tomar distância dela, e ela poderia guiar, já que não importava muito para onde estávamos indo.
Conheci ela moça, calada e arisca depois de uma tentativa mal sucedida de sequestro. Por um erro de cálculo, acabamos matando os únicos que teriam interesse de resgatá-lá e quando nos demos conta tínhamos uma garota a milhas de distância de qualquer vila que pudéssemos abandoná-lá.
O bando estava divido entre matá-lá e enterrarmos o corpo ou matá-lá e deixarmos o corpo para os abutres, mas o chefe tinha se afeiçoado a ela. Ninguém tocava na moça até ele decidir o que fazer com ela. Eu observava distante, sem opinar. Fui contra o sequestro desde o começo e acho que não era eu que tinha que lidar com essas decisões, me contentava em fazer meu trabalho.
Seu nome era Annabelle, tinha deixado o sobrenome para trás e aprendeu rápido demais a empunhar uma arma. Sabia enrolar as pessoas como ninguém e em pouco tempo já era um dos membros mais importantes do bando. Os olhos do chefe brilhavam ao vê-lá em ação, mas ela resistia a qualquer tipo de investida dele. Os outros nem se atreviam.
Ele descontava na gente, deixava o trabalho braçal com a gente e os planos inteligentes e bem bolados com ela. Gordo como seu cavalo, se contentava em montar acampamento nos arredores da cidade e esperar nós voltarmos com as recompensas, os prêmios ou as vítimas.
Meu entrosamento com Annabelle ficava cada vez mais forte, mas segurava o ar profissional para nao gerar problemas pra mim. Nosso chefe era rico e bem conectado. Não havia um chefe de distrito que não devia favores a ele. Nosso cabresto era mantido por dividas e medo.
Mas ela tinha ele na mão. Fazia o que queria, quando queria. Ficava com a maior parte das recompensas, invadiam os cabarés para roubar os melhores tecidos para ela. Quando ela começou a dar ordens, o resto do bando se reuniu e me cobraram uma atitude. 
Eu, na época um cowboy despreparado e inexperiente, ainda assim a mais tempo e com mais atitude e empenho que aquele grupo de ladrões e artistas de circo que me cercavam. Entrei na tenda do chefe, ele roncava alto. Vi que os olhos de Annabelle me acompanhavam de longe, se perguntando minhas intenções.
”Bóris, precisamos conversar. Sobre..."
"Eu já sei. Você precisa me ajudar, eu fiz tudo por ela. Treinei, amei, dei do bom e do melhor e ela tá cada vez mais rebelde, mandona, reclamona"
"Chefe, ela está tomando conta. Fazendo planos, dando ordens, repreendendo. Ninguém sabe como reagir."
"Você é meu melhor cowboy, acabe com isso, foi um erro. Tome a atitude que precisar."
Assenti com a cabeça e saí. Mil pensamentos degladiavam em mim, uma companheira tão talentosa seria eliminada assim tão friamente por mim. Não queria resistência, ia ser rápido e indolor. Uma lamparina fraca iluminava o interior de sua barraca. Entrei com a colt em punho e encarei... O nada. Sua barraca era preenchida de luz pela lamparina no centro. Saí com um grito: "Pra onde ela foi?", todos me olhavam atônitos. Um tiro no rumo do celeiro e vimos ela fugindo no melhor cavalo, o meu. Os outros cavalos corriam assustados rumo ao nada. Impotentes, observávamos ela sumindo no horizonte. 
Um segundo tiro, agora de dentro da cabana do nosso chefe. Um corpo gordo, agora sem face, caído mole no chão, sua pistola ainda quente. De que adianta a influência e poder se sua amada sugou tudo que pode e foi embora? Assim acabou o bando, os roubos, sequestros e recompensas. 
Encontrei meu cavalo na primeira cidade que parei. Diziam que pertencia a uma bela dama emancipada e talentosa que chegou na cidade. Ela não era vista a dias, e parece que tinha fugido com as jóias da falecida esposa do prefeito.
"Deixei seu cavalo lá por pena de você. O que seria de você sem esse alazão velho?". Cinco anos se passaram e ela continuava insolente. "Eu ia te matar aquele dia, você sabia? Isso me assombra todas as noites desde então".
"Eu não vim falar de passado, eu vim falar de negócios. Me contaram que você mexe com medicinais agora, precisarei de um favor, acho que é o mínimo que você me deve".

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A Cela.



Quando ele virou, meu punho já estava perto demais da sua mandíbula para desviar. Aproveitei a confusão para agir. Foram sete alvoradas até eu não aguentar mais. Não sou um cara violento, mas também tenho minhas fraquezas, meus gatilhos. Sem minhas armas, fui obrigado a recorrer às técnicas do meu avô, que tinha ganhado um porco em uma feira por causa do seu soco potente.
Minha última missão não terminou bem. Fui reconhecido e pego de surpresa por um bando de mercenários. Agora estou nessa cela limpando o sangue da minha mão na roupa do sujeito que derrubei. Lá fora ninguém percebeu a movimentação, mas logo ele vai acordar e começar a chamar os guardas.
Estou há uma semana sem falar uma palavra, esperando o juiz chegar em sua diligência com ar pomposo e provavelmente minha condenação. Com meu rosto retratado em cartazes por toda a vila, eventualmente alguém seria mais esperto que eu. Estou aqui, não estou?
Meu companheiro de cela, agora um corpo desacordado ocupando o pouco espaço que dividimos, não teve tanta sorte. Preso por se engraçar com uma das filhas do xerife, não parava de falar um minuto. Contava vantagem sobre as mulheres que conheceu, os duelos que ganhou, mil trambicagens e malandragens que o fez sobreviver até chegar nessa cela com cheiro de mofo. Puxava conversa com outros presos, com os guardas, com os visitantes.
Tenho um receio de gente expansiva. Acabam falando demais para ganhar confiança dos outros. Contam vantagem achando que assim as pessoas vão gostar mais delas, mas eu não caio nessa. Conheço o tipo. Finge que é seu amigo para depois pedir favor. Gente que eu não quero perto nem nessa nem na próxima vida.
E assim eu ouvi ele me provocar nos últimos dias. Os guardas, se divertindo com meu mau humor, contavam histórias e lendas sobre mim. Ele perguntava sobre meus pais, minha família, meu cavalo, criava histórias para justificar meu silêncio. Aprendi a manter minha cabeça longe das coisas que me faziam mal. Enquanto eles conversavam, fechava os olhos e me via cavalgando por grandes planícies, a poeira levantando atrás de mim, nenhuma índole ruim em milhas e milhas de distância.
Foi quando ouvi o nome dela. Aparentemente fiquei repetindo um nome enquanto dormia, um dos guardas ouviu e contou para ele. Era minha filha? Minha esposa? Uma cabritinha que eu abusava na fazenda onde cresci? Continuei calado, impassível, esperando meu momento. Ele continuava me provocando, queria conhecer meus limites. É fácil ficar quieto quando se passa o tempo todo sozinho.
Não demorou até o Sol se pôr para alguma confusão chamar a atenção dos guardas. De repente estávamos apenas eu e ele na cela. Sozinhos. Finalmente. Ele distraído, já que eu pouco me movia desde que cheguei ali, se espremia contra a grade para saber o que estava acontecendo. Quando ele virou, meu punho já estava perto demais da sua mandíbula para desviar. O corpo caiu seco como um toco e eu voltei para meu canto da cela, esperando a confusão lá fora acalmar e os guardas voltarem.
O barulho acabou de repente, foi quando comecei a pensar o que poderia ter causado esse alvoroço. Um assalto ao saloon da cidade, algum duelo na rua principal. Nada justificava a demora dos guardas. A porta se abriu, e eu vi alguém se aproximando. Uma silhueta que eu reconheceria mesmo contra a luz de vela mais fraca.
"Achei seu cavalo vagando sozinho e imaginei que você estava precisando de ajuda, ele me trouxe até aqui. Parece que você não fez muitos amigos nessa cidade."
"Maldito Faísca," eu pensei enquanto pegava as armas dos guardas caídos no chão, "tanta gente no mundo e me traz a última pessoa que eu gostaria de ver".
Passei a mão na crina do meu cavalo, que parecia feliz em me ver. Enquanto arrumava minhas encomendas em suas costas, tentei quebrar o gelo: "Se eu disser que eu estava falando sobre você agora a pouco você não acreditaria, Annabelle", ela nem sorriu.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O Cavalo.


Às vezes, a estrada é muito solitária, mas a gente se distrái como pode. Deitei ao lado de um trilho com Faísca, meu alazão, e fiquei formando imagens com as estrelas. Minha vó sempre dizia que os deuses antigos moravam lá, mas eu achava complicado. Devia ser frio e solitário demais para alguém morar ali.
Não que minha vida fosse muito diferente. Passo dias andando por terras sem mato nem rio, montando fogueiras à noite para afastar os chacais, em companhia só do meu cavalo. O último irmão que me sobrou. Um por um os outros foram assassinados por ladrões, xerifes, índios e cafetinas. Nós éramos dezessete quando comecei, hoje somos dois. Eu e o Faísca.
Ele não é de falar muito, então a maior parte do tempo eu divago sozinho, mas é um ótimo ouvinte. Seu olhar de repreensão quando conto minhas aventuras é mais duro do que a cinta de couro do meu velho pai.
Consigo listar vários motivos pelos quais cavalos são melhores que homens, mas o principal é eles não precisarem de dinheiro. Sem ganância não tem traição nem sangue. Seu propósito de vida é estar ao meu lado e meu propósito é estar ao lado dele.
Andamos mais de duas mil milhas juntos, fomos do sul ao norte do país em áreas que os peregrinos não chegaram a invadir. Carregando corpos e encomendas de um lado e sacos de dinheiro e mantimentos do outro.
Um companheiro que nunca me delataria, independente do valor da minha recompensa. Até ouvi uma vez em um bar que a cabeça do velho Faísca valia tanto quanto a minha. Junto viramos lendas. As pessoas já conhecem cada cicatriz da minha face e cada mancha de seu pêlo. O barulho do seu trote já é o suficiente para amedrontar os mais corajosos dos coiotes.
Faísca já pulou na frente de bala por mim, me salvou do enforcamento. Hoje, apontando para as estrelas, tento mostrar que aquele grupo ali no canto formam uma cabeça de cavalo, provavelmente de algum ancestral dele, um rei antigo das terras além-mar. Minha vó contava sobre homens com cabeças de cavalo com poderes maravilhosos, mil mulheres, mil tesouros. Gostava de acreditar que era nosso ancestral comum.
Ele parecia sonolento, eu com a cabeça em sua barriga e o chapéu cobrindo meus olhos. O poncho de lã esquentava meu peito e a fogueira esquentava meu pé. Andar por essas bandas era perigoso essa época do ano, mas ao lado do meu cavalo, não tinha medo de nada.
Ainda não tinha amanhecido quando o chão começou a tremer. Nos levantamos rápido, apaguei a fogueira com areia, peguei minhas bolsas no chão e nos preparamos. Mais alguns minutos e conseguimos ver a fumaça da locomotiva aparecendo no horizonte. Atrasada, como sempre.
Eu e meu cavalo começamos a correr para poder alcançar o trem em movimento. Quanto mais ele se aproximava, mais o chão tremia e mais rápido nós corríamos. Apertei a colt na cintura, e fui aos pouco me preparando para o pulo. Até que a locomotiva nos alcançou e nos passou a toda velocidade.
Eu tinha alguns segundos para acertar exatamente meu salto. Os vagões passavam enquanto eu calculava mentalmente a hora certa de pular. Não é como se fosse meu primeiro assalto em um trem, mas cada um que faço eu rezo para ser o último. Odiava toda essa tensão. Só mais um segundo e… Um pouso quase perfeito no último vagão. Pelas lamparinas que foram se acendendo nos momentos que se seguiram, devo ter feito bastante barulho quando caí.
Olhei para trás e vi meu companheiro diminuindo a medida que nos afastávamos. Ele sabia onde me encontrar: seguir o trilho até a próxima estação e esperar até o sol se pôr novamente, mas ainda assim partia meu coração abandoná-lo novamente. Um nobre senhor abriu a portinhola de acesso para ver o que estava acontecendo, bom que não precisei nem liberar uma das mãos para rendê-lo. Meu Faísca não estava mais a vista, era hora de fazer meu trabalho.