quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A Queda

Ninguém podia afirmar que ele era um perdedor. Ele tinha um emprego legal, uma namorada legal, era quase bom em tudo que fazia com destaque em uma coisa ou outra. Mas ainda assim ele estava ali, na beirada da janela pensando se morreria na queda ou só quando atingisse o chão. Nada do que tinha era forte o suficiente para prendê-lo ali e sua vontade de conhecer coisas novas era grande demais, nunca foi de dar muita satisfação a ninguém. Nunca tinha saído do país, mas sair do país é algo que qualquer um podia fazer. Realista como era sabia que nunca ia ser um astronauta, ainda assim sua vontade de descobrir algo novo o levava a observar a queda por quase uma hora já. Quem iria sentir falta dele? Quem só ia descobrir meses depois? E, mais importante, pra onde ele iria? Não acreditava na dicotomia inferno/paraíso, mas se recusava a pensar que não teria nada além. E se acabasse ali, bem, sua consciência iria cessar e não existiria arrependimento, logo era uma relação de ganho para os dois lados. Ele não acreditava em saudades, sentir falta. O que aconteceu vai sempre existir, ele queria algo novo e, no momento, o mais perto de uma nova experiência que ele tinha era aquela queda. Sentou-se no parapeito da janela e sentiu o vento, suas pernas para o lado de fora. E se caísse acidentalmente? Também se livraria da responsabilidade de tomar aquela decisão. Todos superariam, todos superam eventualmente. Toda dor é passageira e sua dor duraria o quê? 5 segundos no máximo. Pensou em segurar a respiração para se distrair durante a queda ou talvez sua vida passasse diante de seus olhos, o que seria distração o suficiente. Estava decidido, ia pular. Ficou em pé na janela, tirou os óculos e os jogou na cama. Olhou pra baixo mais uma vez e deixou seu corpo cair. Acordou no hospital duas semanas depois, sua mãe ao seu lado chorou como nunca. Ele não tinha certeza do que tinha acontecido, não se lembrava da queda, não se lembrava de chegar ao chão nem de ter alguma experiência de quase morte. A notícia se espalhou, seus amigos vieram lhe visitar, no começo todos ficavam felizes por estar vivo até começarem a questionar porque ele tinha feito aquilo, se estava com depressão, se sua vida não era boa. O que ele mais odiava no mundo era ter que se explicar e agora estava ali em uma situação onde tudo o que procuravam nele era um motivo. Ele pulou porque queria ver como era, sentir algo que ninguém nunca sentiu e o que conseguiu foi um blecaute mental, vários ossos quebrados e todos seus conhecidos o cobrando uma resposta que ele desapontadamente não tinha. Quer dizer, a não ser que aquilo ali seja o Inferno, aí sim, tudo faz sentido novamente.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Roteiro para institucional genérico.

Externa, dia. Imagem em preto e branco, trilha sonora instrumental e dramática no fundo. Close em garoto com síndrome de Down em um balanço rindo (entre 5 e 8 anos, bem vestido). Narração em OFF: "Este é Carlinhos, ele tem síndrome de Down". Câmera vai se afastando até mostrar que ao lado de Carlinhos tem um outro garoto também rindo no balanço ao lado (negro, mal vestido, entre 5 e 8 anos também). "Eduardo mora nas ruas". Câmera fixa nos dois garotos brincando um ao lado do outro. "Carlinhos nasceu livre de preconceitos. Para ele, Eduardo não tem cor, credo ou sexualidade. Eduardo, depois de sofrer vários abusos, ainda tem medo de adultos". Um homem e uma mulher, classe média alta, entram sorrindo e buscam Carlinhos, que se despede feliz do garoto ao seu lado. A câmera ainda fixa mostra o casal e Carlinhos indo embora e o outro garoto ficando sozinho e triste parado no balanço sem ter com quem brincar. "Carlinhos tem síndrome de down, Eduardo não teve tanta sorte". Entra assinatura e logo.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Um jogo velho contra um velho amigo.


Se você soubesse como está o tabuleiro
Não teria colocado outra peça
Depois de tudo que falamos sobre elas
Você vem e me apronta uma dessas!

Três rainhas não cabem no xadrez
Ainda mais se isso custar um rei
Saudades de quando éramos apenas peões.
Preocupados demais com nossas posições

Fazíamos sonetos sobre andar em "L"
E sobre um dia virarmos torres
Ou fortes bispos gritando "Xeque"

Para chegar aqui neste universo de duas cores
Onde poemas são feitos sem perceber
Com o simples intuito de aparecer

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Esse homem.

Um dia ele simplesmente não acordou. Mas diferente de outras pessoas que morrem ou ficam em coma, o que ele estava experimentando era a sensação constante de estar sonhando. Quando ele primeiro teve consciência, ele se aproveitou ao máximo do poder que tinha. Podia fazer o que quiser, sem medo das consequências. Os sonhos seguiam uma lógica própria, mas ele os manipulava como queria. Com o tempo, ele foi cansando da própria cabeça. Depois de muito vagar sem rumo, um dia se viu em um lugar diferente. Tinha algo acontecendo mas ele não era mais o foco dos acontecimentos, como estava acostumado e também não tinha mais poderes sobre as coisas. Após observar a situação, ele rapidamente conseguiu apontar o dono do sonho. Era uma menina, provavelmente uns 15 anos, que sonhava com um ator famoso que ele já não lembrava mais o nome. Tentou se aproximar para ver o que conversavam, mas de repente o cenário mudou. Uma mesa de bilhar recebia um grupo de amigos. Todos bebiam e conversavam alegremente, o dono do sonho provavelmente era um jovem de uns 25 anos que falava mais alto e jogava melhor do que os outros. Ele pediu uma cerveja e encostou no balcão, observando a situação por algumas horas. Muda o cenário: um quarto onde uma família fofoca sobre outras pessoas. Não sabendo os limites de estar em um sonho externo a sua própria cabeça, tentou sair do quarto, mas em vão. Apenas uma imensidão branca existia fora daquele cômodo. Se encostou na parede e esperou o sonho acabar. Um menino sonha que está montado em um dragão resgatando uma princesa. Uma senhora lava roupas enquanto sua mãe, mais nova que ela, fica repetindo que ela é uma imprestável. Um homem casado sonha que está transando com sua secretária. Um garotinho tem uma longa caminhada com Jesus enquanto conversam sobre as verdades do mundo. Outro homem sonha que ganhou na loteria. Isso continua por anos. Enquanto isso, no mundo real, espalha-se pela internet e pelas ruas do mundo a imagem de um homem, de cara redonda, sombrancelhas grossas e pouco cabelo que muitos afirmam ter visto em seus sonhos. Algumas vezes ele teve papel ativo em seus sonhos, em outras vezes ele estava simplesmente lá. Ninguém sabe explicar quem é ele ou quais são suas intenções, mas teorias começam a surgir em todo lugar. Mal sabem eles que esse homem, sem mais ter o que sonhar, daria tudo pra poder acordar novamente.