terça-feira, 10 de novembro de 2020

Love craft.



Querido diário, venho aqui tentar transcrever em palavras algo que me falta ainda compreensão. Algo que só tinha lido nos livros antigos e em histórias tradicionais. Algo que, quando jovem, ri da mera menção a sua existência e hoje, vendo a realidade de forma mais turva e perdendo um pouco de minha
própria sanidade, preciso lidar com os fatos os quais tão imaturamente tive que encarar. Tudo começou quando em último dezembro percorria os velhos diários de meu tio para enfrentar o tédio sufocante de outro verão no interior. Nas velhas páginas rabiscadas, de um tempo onde papel e caneta ainda cumpriam sua função primitiva de guardar segredos, encontrei um singelo recado que me chamou atenção: um pequeno papel rasgado, oriundo de um saco de pão, com uma sequência numérica intrigante e um nome feminino ao lado. Comecei a buscar em outros trechos qualquer referência ao nome "Sara", mas obtive pouco sucesso. Os números desafiavam qualquer sequência conhecida pelo homem e mesmo minha incessante busca pelos anais dos buscadores digitais se demonstrou infrutífera enquanto minha mente se tomava por uma obstinada obsessão pelos códigos em minha frente. Minhas noites eram tomadas por pensamentos errantes que me impediam de focar em outra coisa, meus dias ocupados pela busca de uma explicação. Quanto mais dias se passavam, mais distante eu me via de uma resposta. O falecimento prematuro de meu tio, o qual pouco conheci além das velhas fotos espalhadas por sua casa de campo, os empoeirados discos no armário e o diário com pequenas anotações cotidianas de seus tempos na cidade, me deixavam poucas opções além de uma abordagem mais direta dessa questão. Levei as poucas evidências que tinha em mãos e fui até a irmã de minha progenitora na vã esperança de ela abrir meus olhos para novas direções, mas fui agressivamente dispensado e caçoado pela minha obsessão infantil com aquelas informações. Dias se passaram, semanas, talvez anos, minha mente já não registrava mais o conceito de tempo linear da mesma maneira. Tudo parecia distorcido em minha própria realidade. Quanto mais encarava aquele recorte, mais confuso ficava. Talvez não fosse realmente um nome feminino, poderia ser um verbo, um adjetivo, uma sigla, a infinidade da língua e das possibilidades não-linguísticas me colocavam em uma nova espiral. O vazio dentro de mim ecoava a ausência de informação e, ao mesmo tempo, permitia que um apego inexplicável crescesse dentro de mim referente aquele mísero pedaço de papel. O números se embaralham ao olhar em busca de qualquer sentido e relação entre eles, combinações de cofres secretos em escotilhas sobre a cama, analogias a letras e outros símbolos criptografados. Minha incessante busca por um significado só tornava aquele processo, e meu tio consequentemente, ainda mais interessante e misterioso. As palavras em seu diário extrapolavam sua denotação, todo registro de compra, apostas em jogo, cada ação relatada naquelas velhas páginas escondiam em si a resolução do mistério que dominava meu pensamento. O fim de meu recesso de verão se aproximava e com ele findava também as minhas esperanças de encontrar respostas satisfatórias às minhas obsessões. Tendo checado todas as canções em sua velha vitrola, todos os livros em sua vasta biblioteca, prostrado em meus aposentos encarando a arquitetura em minha frente, tenho então um sinal que a única explicação é a verdadeira vontade cósmica dos deuses antigos de saciar essa jovem mente com um conhecimento além da verdade. O sinal sonoro que se perdeu além dos tempos, uma verdade tão pura e verdadeira, que nem o mais sapiente dos gurus poderia imaginar: um pequeno dispositivo mecânico utilizado por nossos ancestrais dava seu ressoar sonoro e me mostrava o que eu me neguei a ver durante toda minha jornada. Corro na direção de tal dispositivo como a feroz águia em direção a sua ignorante presa. Ao alcançá-lo, hesito, pois sei que a verdade está a um breve momento de se revelar a minha frente. Com minhas pequenas mãos trêmulas, giro o disco com os algarismos marcados no singelo papel. Um toque. O segundo. Sinto o suor frio escorrer sobre meu rosto enquanto meu peito palpita incessantemente, a qualquer momento... Ouço do outro lado uma voz suave, porém vivida, me saudando. Minha voz, prejudicada pela distância que me separa da puberdade, tenta parecer madura enquanto requisito que passem o telefone para ela... Sara. A doce senhora ao outro lado do telefone se identifica e ouve pacientemente meu relato. Minha pouca idade a delicia e vejo que tenho em minha frente aquilo que tanto esperava. Sara não se prende em contar como conhecera meu tio, Milton, em uma festividade na cidade, muitos anos atrás. Seu jeito galante e o nariz marcado por uma desavença anterior o faziam um sujeito cobiçado entre as outras jovens da região, mas foi por Sara que ele se apaixonou. Era comum ver Milton com buquê de flores pela cidade, encomendando discos estrangeiros para presenteá-la e até trazendo costureiras de fora para a produção de vestidos sob medida a cada evento e gala. Ele não só dava presentes, mas era presente e carinhoso, fato que o tornava o pretendente ideal aos olhos dos pais de Sara. E por dois anos, Sara viveu intensamente aquela relação, fazendo planos de matrimônio e filhos assim que pudessem sustentar seu próprio lar. Infelizmente, o Destino é um ser mais antigo que os deuses, e suas decisões pouco levam em conta a nossa vontade. Em um descuido durante sua volta pra casa, Milton perdeu o controle de seu automóvel e se envolveu em um horrível acidente. A cidade estava de luto, mas irremediável estava Sara, cujo futuro feliz ao lado de seu amor também tinha nos deixado no acidente. Os anos se passaram e a dor diminuiu. Milton se transformou em apenas uma feliz lembrança de um passado e um futuro que já não existia mais. Sara, então me revelou com sua voz embargada, que o recorte que encontrei havia sido escrito por ela, a primeira vez que Milton a abordara. Era seu telefone para que eles pudessem se contactar em uma realidade pré-internet. Agradeci, também emocionado, não só pelas respostas que tanto procurei mas também por compartilhar esse relato de um amor que sobreviveu a maior das fatalidades. Um acontecimento maior que o passar do tempo e que o entendimento humano. Um amor que para mim só existia nos velhos livros de um árabe louco e que agora estava diante de mim. Escrevo essas palavras em meu caminho de volta para minha cidade, onde nas próximas semanas retornarei a minhas atividades escolares. Divido com você esse relato pois sei que meus companheiros de estudos pouco levarão a sério a grandeza de tal descoberta. Eu, mais próximo dos meus treze anos, enfim posso afirmar que presencial algo maior do que a própria existência humana. Algo que meu cérebro ainda tem dificuldades de entender. Volto para minha vida como um novo homem, ainda com dificuldades de lidar com um sentimento de tal grandeza como o amor.

" Love Craft" (ou "Um amor além da compreensão")

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