terça-feira, 24 de dezembro de 2013

O Último Conto de Natal


Parte 1

A sociedade já tinha se destruído. Entre guerras e conflitos, acabaram-se as religiões, o capitalismo e a pouca noção de civilidade que ainda tínhamos. Os poucos que sobraram viviam baseados numa ciência do passado, já que poucos estudavam e pouco ainda era divulgado. A comunicação com outras regiões era raríssima, desde que um acordo antiespionagem tinha derrubados todos os satélites. Internet, televisão, telefones, eram tidos como conversas dos mais velhos, saudosos e nostálgicos. As pessoas se conformavam com os poucos que conheciam e pouco tentavam tirar do relacionamento de cada um.
Flávio fazia parte do pouco mais de trezentas mil pessoas que habitavam o mundo. Criado em uma família muito católica, aprendeu cedo a questionar seus dogmas e preconceitos, mas com o fim das mídias a Igreja Católica havia perdido totalmente seu poder e relevância. Flávio vivia uma vida modesta, comia pouco e fazia exercícios. Usava o resto de seu tempo para ler. Trocava os enlatados que sobraram da antiga rede de supermercados de seu pai por livros de todos os tipos. Já havia lido de psicologia a romance baratos, de auto-ajuda a anatomia vegetal. Poucos se importavam com leitura, conhecimento é luxo em uma sociedade onde você só tem o agora.
Ele acordou como em uma manhã qualquer, fria pelo inverno, foi até sua cozinha e fez café. Encostado na base da pia, observava os primeiros flocos de neve caindo em sua janela. Mal se lembrava do auge do capitalismo, com suas cores e luzes de Natal. Onde a felicidade era ganhar o celular mais tecnológico, a roupa mais cara. Com a baixa do catolicismo, nem o mais irônico dos publicitários ousou falar de "Espírito de Natal". Ele nem sentia falta. Felicidade era um conceito complicado atualmente. Sem objetivos futuros, as pessoas não se decepcionam mais, não sentem mais saudades, não se gostam mais. Não tem mais apego, um dos motivos da população não se renovar mais. O sexo, pra reprodução ou não, era cada vez mais raro. Ninguém mais queria ter que conviver com o outro. O café já esquentava seu corpo e coração frio.
Ouviu um barulho em sua porta. Primeiramente imaginou ser algum animal perdido ou algo assim, mas a famigerada batida na porta (um costume que se perdera quando as pessoas pararam de se visitar) não deixava dúvidas: era alguém. Com o susto, sua primeira reação foi ficar imóvel. Não estava pronto para receber alguém, sua casa não estava organizada, não tinha preparado nenhum assunto para entreter um convidado, servir café significava que faltaria café depois. Foi só quando ouviu novamente uma segunda batida que deu por si que tinha que fazer alguma coisa. Colocou sua xícara em cima da pia e foi em direção a janela, mas a janela embaçada pelo calor de dentro e o frio de fora, só permitia ver um vulto.
"Qu... quem é?", não lembrava quando foi a última vez que tinha falado tão alto. A terceira batida na porta, agora com impaciência, fez com que Flávio abrisse mesmo sem ter resposta.

Parte 2

Uma moça, toda coberta com blusas e uma mochila grande, entrou correndo dentro da casa: "Nossa, Flávio, quer me matar de frio? Tem quase dez minutos que eu to esperando lá fora". Flávio olhava assustado para a figura em sua sala de estar. Não a conhecia e muito menos sabia como que ela sabia seu nome. Enquanto ela tirava as camadas de jaquetas e casacos, uma mulher muito bonita se revelava. "Que cara é essa, Flávio? Parece que não me conhece", e abraçou fortemente ele. Imóvel, Flávio ainda tentou se lembrar de alguma situação que poderia ter conhecido uma pessoa tão espaçosa e expansiva, mas nada passou em sua cabeça. "Vem aqui, te trouxe presentes", ela disse enquanto o entregava um álbum de fotografia e tirava carnes e vinhos de sua mochila.
"Espera. Ei, para com isso". Ela parou assustada enquanto procurava um saca-rolhas na mochila. "Quem diabos é você, o que você está fazendo na minha casa e porque você está me dando essas coisas?".
"Eu, Flavinho, sou sua prima Márcia. A gente brincava juntos no quintal do Tio Marcos quando éramos pequenos". Flávio continuava sem entender, ele tivera realmente um tio Marcos, mas não lembrava de brincar com ninguém, muito menos de convidar algum familiar para fazer uma visita.
"Calma, você vai entender". Ela lhe trouxe uma taça de vinho, e o acomodou no sofá. Sentada ao seu lado, ela abriu entre suas pernas o álbum que tinha trago. "Lembra do tanto que a gente gostava do Natal? Era o melhor momento do ano! A gente reunia todos os primos e ficava brincando de tentar adivinhar cada presente na árvore", Flávio olhava para o álbum e via fotos suas com outras crianças que não lembrava mais quem era, entre brinquedos, árvores de Natal, comida. Parecia estar muito divertido.
"Esse ano aqui, eu te levei para o quintal e a gente fez um boneco de neve todo feito de terra, nessa foto aqui você estava chorando porque não tinha ganhado o carrinho que você queria". Flávio não entendia, como ele poderia não se lembrar desses momentos? Sua memória, que costumava ser uma lembrança triste e sozinha dos anos finais do supermercado do pai, aos poucos se enchia de cor e calor com as fotos que observava. Não entedia como bloqueara tempos tão felizes de sua vida.
"Desculpa, Márcia. Não preparei nada pra você. Não tem presente, nem comida, nem espaço para te abrigar." Sua voz agora em um misto de vergonha e vontade de chorar. "Estou tão acostumado a estar sozinho, que nem sabia que ainda poderia existir algum familiar meu por aí". Tentando disfarçar as lágrimas, Flávio se levantou e foi direto para a cozinha. Márcia, feliz e energética, se levantou. "Não se preocupe, primo. Vim aqui só para deixar o álbum mesmo. Lá fora está difícil para todo mundo, só não queria deixar você esquecer que é Natal, momento de estar feliz".
"Não quis te mandar, embora! Desculpa. Estou desacostumado a conviver com pessoas. Por favor, fique!", mas Márcia já se enrolava novamente em seus cobertores. "Primo, ainda tenho muitos lugares para ir até o Natal. Agradeço a hospitalidade, mas minha parada aqui já acabou", ela disse enquanto sorria. Com um último abraço e um beijo no rosto, Márcia foi embora. Tentou chamá-la para levar parte da comida e dos vinhos que ela tinha deixado, mas quando deu por si ela já tinha sumido na rua vazia e agora coberta por neve.

Parte 3

Ainda lidando com aquela visita rápida e inesperada, Flávio estava em choque em sua sala. De onde veio tudo aquilo? Folheava o álbum de fotos e pensando como não se lembrava de momentos tão felizes quanto aqueles. Do que mais ele não se lembrava de antes de tudo cair? Sua inquietudo o fez se arrumar e andar pelas ruas da cidade. As lojas abandonadas e a desertidão o lembrava do porquê não saía mais de casa. Não havia muito o que se ver nem a quem visitar. Os poucos que ainda moravam por lá se isolavam em suas casas, onde já tinham todos os mantimentos que precisavam. Em um ou outro lugar, se viam luzes acesas. Ele andava calmamente pela rua, lutando contra o frio e o chão escorregadio.
Chegando no que costumava ser a avenida principal da cidade, lembrou de que em algum momento o prefeito montou uma árvore gigantesca, cheia de bolas coloridas e brinquedos. Fora a coisa mais bonita que já vira na vida. Mais uma vez ele se perguntou como não tinha lembranças vívidas de algo que o marcou tanto na época. Era triste ver as placas tomadas por ferrugens, as vitrines de lojas quebradas e sem produtos. Flávio se sentia numa cidade fantasma que morreu aos poucos sem que ninguém percebesse ou desse falta.
"Ei, tio!", Flávio se assustou novamente. Não esperava ver mais gente na rua. Uma criança, provavelmente sem nem uma década de vida, acenava do outro lado da rua, vestida com trapos do que parecia ser uma cortina velha. "Você pode ajudar a gente num negócio aqui?", Flávio olhou em volta para ver se era com ele, tendo que lidar com a verdade óbvia que não havia mais ninguém na rua além dele. Flávio atravessou em direção ao garoto que prontamente segurou sua mão e o guiou para um pequeno beco iluminado.
"Meu nome é Júlio, muito prazer, mas você pode me chamar de Máximo Nove Mil que é como meus amigos me chamam. A gente tá tentando fazer um teatrinho mas minha irmã simplesmente não para de chorar aí não tem como atuar com um Jesus chorão que nem aquele. Tá complicado, o Guto que tá sendo o anjo já tá ficando com fome e eu falei que a gente só ia fazer a ceia depois que os três reis magos chegassem, mas o Nando, o Pedro e a Tete tão atrasados e...", Flávio estava admirado. No fim do beco havia uma pequena manjedoura improvisada em papelão, um garoto vestido de anjo em cima de uma lixeira, uma garota segurando tentando controlar um bebê que não parava de chorar, vários cachorros quietos e sentados observando e de alguma forma aquilo tudo formava um dos presépios mais bonitos que já tinha visto na vida.
"Tá, calma... Máximo Nove Mil. Como eu posso te ajudar?". O garoto o olhou com uma cara de dúvida, e disse como se fosse a coisa mais óbvia do mundo: "Uai, você já viu algum teatro sem platéia? Aí num faz sentido. Eu sou o José, a Lu é a Maria, minha irmã é Jesus, o Guto é o anjo, aí o Rex, Totó, Foguete e o Pandeiro são os animaizinhos, aí tem a Tete, o Nando e o Pedro que são os reis magos mas eles devem estar perdidos e não sobrou ninguém pra assistir. Não tá claro que precisamos de público?".
Admirando a espontaneidade do garoto, Flávio se ajeitou entre uma caixa de papelão e esperou calmamente que o teatro começasse. Faltando pessoas ainda, começaram contando a história de um casal que estava para ter seu filho mas não tinha dinheiro para pagar maternidade. Júlio, ou Máximo Nove Mil, arrasava nos diálogos afiadíssimos e cheio de humor. A história, um pouco deturpada da original, envolvia um anjo obstetra, uma mãe solteira, e a chegada (atrasada mas pontualíssima) de três homens sábios que traziam presentes. Flávio se divertiu, se emocionou e bateu palmas ao final quando todos se juntaram para cantar uma antiga canção de Natal em um coral desafinadíssimo.
Honrados com a presença da plateia, cada um dos pequenos atores foi abraçar Flávio após o show, enquanto comentavam entre si como tudo tinha saído perfeito e que mal esperavam para repetir tudo no ano seguinte. As crianças se abraçaram e se despediram, indo cada um para um canto da cidade vazia. Flávio voltava para casa na cidade que escurecia, inspirado numa nova geração que, mais do que acreditava no Natal, acreditava no relacionamento das pessoas.

Parte 4

Chegou para casa com o coração cheio. Aquele dia atípico trouxe sensações que não sentia a muito tempo. Abriu os armários velhos onde guardava os objetos deixados por seu pai. Paletós empoeirados, caixas com notas fiscais que hoje não valiam nem o papel as quais foram impressas, uma velha caixa de sapato. Tentou a todo custa encontrar a velha árvore de seu pai, feita de plástico e durável como todas as coisas que não duraram na época. Mas não encontrou. Ficou triste de só ter objetos burocráticos e sem vida como lembrança de seu pai. Era um pai que trabalhava muito mas que tentava fazer valer cada segundo que passava com sua família.
Triste e decepcionado por não achar nada que representasse a presença de seu pai, abriu um dos vinhos que Márcia havia deixado e foi folhear o álbum. Aos poucos já se lembrava do nome das pessoas nas fotos, seus primos, tios, até o cachorro que ganhara um ano e que no ano seguinte se mudou para uma fazenda. Mas uma coisa o encucava. Quando chegou no fim do álbum, reparou que havia um bilhete preso ao álbum. Confuso ainda, pegou o bilhete:

"Filho,

Muita coisa mudou desde que você nasceu. Principalmente na minha vida. Você me deu esperanças de que podíamos ser uma família melhor, um mundo melhor. A inocência e pureza de seus olhos e atos, toda sua vida, era o que me inspirava a seguir em frente independente da dificuldade. Eu sabia que precisava preparar um terreno melhor para seu futuro.
Mas como tudo na vida, às vezes perdemos o controle das coisas, e nos damos mal. Lidar com todas a mudanças do mundo para alguém velho e fraco como eu, não está sendo fácil. Sua mãe nos deixou tão de repente e só agora eu tenho a real dimensão da falta que ela tem feito na minha e na sua vida. Você se tornou uma pessoa fria, sem fé e sem esperanças. E estar assim num mundo como o nosso é complicado demais.
Desculpa não ter sido capaz de manter em você a alegria de um mundo melhor, de não ter dado a você os melhores presentes e as melhores festas que alguém bom e puro como você merecia. Você se corrompeu a frieza de um mundo que não estávamos preparados. Ninguém soube lidar direito com tudo isso e eu falhei em descontar em você minhas frustrações na minha fé e no meu trabalho. Hoje eu sei que a vida é muito mais do que dinheiro, e a gente aprendeu essa lição da maneira mais cruel. Sendo privados de tudo que tínhamos como quem se tira um curativo.
Não sei quando vou ter coragem de lhe enviar essa carta, mas sei que não tenho mais muito tempo de vida. Quando eu for embora, você vai estar sozinho. Não se renda a crueldade do destino, vá atrás de pessoas para amar e para viver. Faça amigos, faça o bem para quem você não conhece. A vida é muito mais do que internet, tecnologia e dinheiro. A vida é viver ao lado de alguém que te faça bem, e eu felizmente consegui viver até o fim ao seu lado.
Espero que quando você ler essa carta, não seja tarde demais.

Feliz Natal,
Te amo.

Papai."

Com o rosto inchado, Flávio pegou uma roupa quente e uma sacola grande e encheu com tudo aquilo que tinha em sua casa. Tudo que guardou com tanto medo de que lhe fosse fazer falta. Foi atrás das crianças que conheceram mais cedo, atrás de uma família para busca mas não encontrou nem sinal do presépio que vira mais cedo. Enquanto perambulava pela cidade, deixando garrafas de vinhos e brinquedos velhos na porta das casas que havia luz, um detalhe lhe incomodava. Não lembrava de ver fotos de sua prima Márcia no álbum de família. Bem, não era algo para se preocupar no momento. Quando já tinha distribuido tudo o que tinha pelas casas que encontrou no caminho, estava disposto e feliz consigo mesmo. Pronto para voltar pra casa, ouviu ao longe um grito: "Ei, tio!". O pequeno Júlio, ou melhor Máximo Nove Mil, acenava ao longe novamente. Flávio o viu correndo em sua direção e pegar novamente em sua mão. "Isso é hora de perambular pela rua sozinho? Vem aqui que lá em casa tá tendo ceia e cabe o senhor lá. Meus pais vão ficar super felizes de receber e eu ainda vou falar pra eles que você é uma ótima platéia, você vai adorar eles, você vai ver, e você ainda vai poder conhecer melhor o Totó, o Rex, o Foguete e o Pandero que eu até coloquei um chapeuzinho de Papai Noel em cada um deles e eles ficaram super engraçados..."

E depois de muito tempo, o Natal voltou a fazer sentido em um mundo frio e complicado.

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